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quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Moro na mira

Carlos U Pozzobon

O manifesto divulgado anteontem de empresários, artistas e intelectuais em apoio a Lula tem um significado que transcende o fator Bolsonaro, embora seja usado para esconder as reais intenções do grupo. O manifesto começa assim:
“Mais do que eleger um presidente, em 2022 o Brasil fará plebiscito entre continuar o desastre ou retomar a estabilidade democrática-institucional, o fim do negacionismo, a volta da empatia social e a retomada de um desenvolvimento sustentável. Não há razão que justifique adiar para o segundo turno, correr o risco das incertezas decorrentes de disputas secundárias, e principalmente os riscos de atos fora da Constituição. Por isso, apelamos a todos os democratas, os candidatos e seus eleitores, para que nos unamos no primeiro turno a Luiz Inácio Lula da Silva.”

A afirmação de que “não há razão que justifique adiar para o segundo turno” a disputa eleitoral só pode ser uma tolice. Como o intervalo entre o primeiro e o segundo turno poderá causar “riscos de atos fora da Constituição”, se estes atos ocorrem cotidianamente? A violação diária da Constituição tem se tornado tão banal que evidentemente o texto sugere que se criaria um estado de anarquia. Neste caso, se trata de um erro crasso. Em todo o mundo a anarquia sucede as eleições e não as precede.

Mas será que estes empresários, políticos e intelectuais esqueceram dos black blocs quebrando tudo o que encontravam pela frente? Será que esqueceram as invasões de terra ao arbítrio de bandidos ligados ao PT? De ocupação de escolas e universidades?


A pista para saber o que está acontecendo nos bastidores foi dada por Aloysio Nunes Ferreira, um dos artífices da articulação da candidatura “Lula em Primeiro Turno”. E a razão cristalina não poderia ser outra: a ameaça não é Bolsonaro, usado como bode expiatório, mas Sérgio Moro, o homem que segundo Aloysio “é um juiz de primeira instância que teve alguma conduta na justiça altamente contestada não só com teor das sentenças que proferiu, mas também em razão do fato de ter se aproveitado do poder judiciário, em aliança com uma facção do Ministério Público, para fazer política e galgar postos de poder político. Fora isso, não tem mais nada que o credencie para ser presidente da República do Brasil. O que ele tem? O fato de ser juiz? [...] Porque ele se distingue? Porque realmente conseguiu um grande apoio da mídia e soube cultivar, aproveitar e fazer crescer, mas que agora vai se desvanecendo”.

Ou seja, as sentenças de Moro “altamente contestadas” são mais nocivas ao país que a governança do PT. Comprova que realmente o PSDB, através de Alckmin e Aloysio, se transformou num puxadinho do PT e o maior temor é a figura apolínea de Sérgio Moro, um homem que pretende restabelecer a dignidade que o Brasil viveu no período da Lava Jato — um curto período que haverá de ficar na história do Brasil como um momento em que a corrupção foi confrontada e condenada pela avalanche das ruas e a integridade de um setor do judiciário — e que a canalhocracia política se une para acabar de todas as formas, começando com a perseguição do TCU e agora a aliança com Lula, este homem que o manifesto afirma ser a personificação da “volta da empatia”.

O leitor não precisa ser um especialista em Brasil para entender que a corrupção generalizada funciona como um consórcio para que tudo seja abafado com toneladas de salamaleques, homenagens recíprocas, distribuições de honrarias, banquetes e celebrações de aniversários, títulos honoris causa emanados do entusiasmo desmedido que causa uma mala de dinheiro ou conta bancária em paraíso fiscal, garantida sempre por aqueles princípios recorrentes das autoridades judiciárias de que “ninguém pode ser condenado sem o devido processo legal”, que nunca se sabe quando vai aparecer, a menos daqueles que por acaso caíram nas mãos de Moro que teve a audácia de não se fazer de dissimulado.

Realmente, o manifesto seria preocupante, se não fosse a singular situação em que nos encontramos, com os partidos políticos em estado tal de decomposição que sequer são necessários para eleger um presidente. Isto não diminui as dificuldades de Moro, exatamente porque deste pântano partidário nasceu o fundo eleitoral e o orçamento secreto, os dois maiores inimigos da democracia, exatamente naquele parágrafo da constituição que diz ser a atividade eleitoral franqueada a todos os cidadãos. Como um cidadão comum poderá ombrear outro que recebeu alguns milhões para subornar eleitores é a grande preocupação das eleições deste ano. Pelo menos a garantia de que a casa não se renova. Novamente, a corrupção se uniu em consórcio para refinar uma autocracia à brasileira. Esta é a dificuldade e não manifestos de apoio a Lula.


terça-feira, 9 de junho de 2020

O Curioso Conservadorismo Brasileiro

Carlos U Pozzobon


Em Brasília, manifestantes pedindo o fechamento do Congresso e intervenção no STF se anunciam democratas vigilantes dos perigos da deposição de Bolsonaro. O raciocínio não deixa de ser metafísico: com o Congresso fazendo o que bem entende, e o STF usando e abusando do direito de dar palpite sobre as manchetes da imprensa, é preciso pôr ordem na Casa, e isso deve ser feito utilizando o artigo 142 da CF para que uma intervenção do exército feche aqueles poderes horrorosos da República e uma paz social se estabeleça nos livrando dos tumultos e sobressaltos do cotidiano.

Alguém conhece um recanto de debates onde se pondera se tal ideia funciona? Não consegui descobrir e, no entanto, a repetição domingueira, como se fosse uma missa de louvação ao presidente, vem sendo celebrada invariavelmente.

O erro do pensamento revolucionário consiste na certeza de que uma mudança radical seja capaz de “transformar a sociedade”. Em tese, isto só seria possível se toda a sociedade estivesse envolvida para que da conflagração novos valores germinassem. No Brasil todas as revoltas dos séculos XIX e XX foram dominadas pelo poder central que continuou sendo o mesmo.

Ocorre que a turma do “fechamento” jura de pés juntos ser conservadora. Entretanto, qual a ligação com o conservadorismo que se conhece, por exemplo, da ciência política inglesa com a nossa herança histórica?

A essência do pensamento conservador é o ceticismo. Entendido como uma visão particular de que os assuntos humanos não são exatos como nas ciências naturais em que causa e efeito podem ser mensurados, o conservadorismo parte da premissa de que no terreno social, tudo é incerto. Em decorrência, não nega mudanças, mas adverte para a prudência, porque em se tratando desse ser humano chamado inapropriadamente de racional, as coisas podem dar errado. Como, de fato, a história tem comprovado.

Para existir um conservadorismo respeitável é preciso uma tradição em que ele possa se assentar e, a partir dela, servir de guia para o futuro. Em geral, esta tradição consiste no legado de uma revolução de baixo para cima que estabelece novos princípios, leis e se enraizou no coração do povo, de tal forma que sejam reconhecidos pela sociedade como um fator fundador. Não é coisa de gabinetes, de golpes e contragolpes, que apenas criam novos milionários. A partir de então passa a ser a fonte de inspiração das gerações sucessivas. Já adverti no artigo Operações Proteiformes que nada em nossa tradição permanece como tal. Muda-se tudo, ou quase. Por uma obsessão lampedusiana nossas as instituições, partidos, organismos reguladores, ministérios, tributos, tomadas elétricas, sintaxe da língua e o que se possa imaginar, vão sofrendo mutações ao sabor da vontade de ser diferente, de esconder as vergonhas da corrupção com a roupagem de novos nomes, ou de achar soluções formais sem o mínimo respeito à tradição. Nossa mudança de nomes é uma revolução permanente. Mas com a peculiaridade de que as pessoas envolvidas permanecem na nova estrutura, como o marido traído que troca o sofá para resolver a prática de infidelidade da mulher.

Assim, o que esperar de um conservadorismo numa realidade que nada se conserva? Não se evoca o Parlamento como instituição secular porque se transformou em um saco de gatos com reputação de lupanar. Não se evoca a Constituição, sempre anacrônica ao ponto de ser reformada ou abolida para dar lugar a uma nova. Não se evoca o sistema eleitoral representativo, e a lista segue.

As opiniões que se relacionam com o Império ou com a Abolição, e depois com a República, estão centradas em um enorme elenco de escritores, porém com que fatos da atribulada vida política nacional? A nossa independência foi produzida por Portugal, e a Proclamação da República considerada um golpe de estado. A revolução de trinta? Esqueça. Ela vale menos que a abominável herança que deixou. Qual o sentido de atribuir ao conservadorismo o costume de se referir à bandeira ou símbolos pátrios? Símbolos, como o hino nacional, não são para uso exclusivo de conservadores. Nosso conservadorismo é uma massa amorfa impotente para nos servir de guia e orientação para o presente. E, na falta de tradição, foi encampado pelo maior porra-louca da “inteligentsia” nacional para servir de escudo às ideias revolucionárias do bolsonarismo que se diz conservador.

Não se pode ignorar que na herança histórica, os povos são obstinados na preservação dos mitos poligenéticos. Corresponde a idealização de um momento primitivo de interação social que deve retornar, sob forma superior, num estágio final da história humana. O mito poligenético na América Latina está nas invocações do Sandinismo, do Zapatismo, dos Montoneros e de Tupac Amaru. E entre nós, na glorificação de Tiradentes e Zumbi dos Palmares. Não servem de referência para o conservadorismo.

Anos atrás, comentei uma entrevista de jornal com um famoso chefe de cozinha francês, cujo restaurante era frequentado pela alta sociedade. Disse ele, em certo momento, que a experiência brasileira era muito peculiar para um francês que escolheu o Brasil para viver. Em seu cardápio havia um prato honroso de nossa tradição chamado “pato ao tucupi”. Diz ele que ninguém pedia o tal prato. Certo dia, teve um lampejo de brasilidade e trocou o nome do prato para “canard a l'essence d'orange”. Começou a vender adoidado.

Quando visitei Washington pela primeira vez, em 1983, ao entrar numa “liquor store”, deparei com uma garrafa de destilado que dizia: “rum de Pernambuco”. Intrigado, comprei a garrafa e no hotel, ao provar, era cachaça. Voltei no dia seguinte para decifrar o quebra-cabeças e o proprietário me contou que não poderia vender o produto “cachaça” porque não era nome registrado nos EUA e ademais ninguém saberia o que quer dizer cachaça, e sequer pronunciar. Comprova que a cultura popular, da comida à bebida está em toda a parte no costume do povo, mas não sobe às elites.

Foi preciso a Internet para que as empresas brasileiras começassem a se internacionalizar no agitado fenômeno da globalização dos anos 90. E agora, já exportamos até cachaça. Por isso, os intelectuais conservadores, vivem da narrativa estrangeira traduzindo e adaptando o sumo de outra cultura para a nossa. Nenhum deles que eu conheça tem a mínima intimidade com a literatura brasileira.

Considere, por exemplo, o caso da borracha brasileira. O que aconteceu com a borracha tem proporções parecidas com o declínio do petróleo na Venezuela sob o chavismo. A Venezuela importa hoje gasolina sendo uma das maiores produtoras mundiais no final do século. Com a diferença de cem anos da crise da borracha. Mas o conteúdo humano desagregador é o mesmo. O comunismo venezuelano não tem nada a dever ao nosso regime de exploração da hileia. Será? Se um regime se caracteriza pelo que anuncia, o próprio bolivarianismo não seria comunista: eles se lisonjam dia a dia se autodenominando democratas.

Estudando o ciclo da borracha percebe-se que não deixa nada a dever a Sibéria de Stalin. De grande produtor mundial saímos fora do mercado. Nosso fracasso é atribuído ao roubo de mudas efetuado pelos ingleses que as levaram para o sudeste asiático. Com isso nos reconfortamos em uma explicação que nos exime de refletir mais além do vitimismo banal. Examinando a questão, verificamos que a perda de competitividade de nossa borracha foi motivada pela questão tributária (examinada por Carlos de Vasconcelos em livro de 1906 e apontada 30 anos antes por Tavares Bastos). É o mesmo motivo que tem fechado fábricas nacionais por incapacidade de competição com os chineses. Nossos economistas, sempre anunciando a necessidade de uma reforma tributária, deveriam se deter na formação do estado brasileiro e sua impossibilidade de cortar gastos. Sem isso, qualquer dinheiro que entrar no caixa dos governos logo desaparece, como ocorreu com os royalties do pré-sal.

Achar que a corrupção possa ser combatida com chamamentos à moral, se a própria organização do estado foi aperfeiçoada para que ela se institucionalize, significa viver na ilusão de que se pode ser um conservador vestindo um casaco de tweed inglês, cartola e bengala.


quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Operações proteiformes

Carlos U Pozzobon


Conta a mitologia que Perseu foi aprisionado por Menelau por ser o deus grego que podia informar o caminho a seguir no mar depois de Menelau se perder em meio ao nevoeiro e atracar seu navio na ilha de Pharos. Perseu era um deus das profundezas, encarregado de cuidar dos cardumes e tinha a capacidade de guiar os marinheiros e se disfarçar em outros animais. No mundo clássico era representado nas esculturas conduzindo uma carroça puxada por um hipocampo em pleno mar.

Sabendo que Perseu saía do mar para dormitar ao meio dia entre as rochas de uma praia frequentada por focas na Ilha de Pharos, Menelau se disfarçou com peles de focas juntamente com mais três marinheiros escolhidos a dedo com o objetivo de amarrar as mãos de Perseu e forçá-lo a indicar o caminho de volta para a Grécia. Quando Perseu deitou-se e começou a sesta, os amigos se moveram lentamente em sua direção como se fossem focas e conseguiram dominá-lo.

Conta a lenda que não foi fácil: Perseu se transmutou em leão, cobra, pantera e em um monstruoso javali. Mesmo assim, não conseguiu livrar-se das amarras de Menelau, e terminou indicando as tarefas que Menelau deveria seguir para achar o rumo de casa.

Na literatura, o termo ganhou a expressão proteiforme como qualidade daquilo que muda repentinamente, por astúcia ou ilusão.

Pois bem, os brasileiros deveriam usar a expressão a cada vez que uma operação de envergadura mutante dissimulada fosse posta em ação. Porque não há nada mais banal em nossos costumes do que mudar as coisas para fazer com que permaneçam como estão. Assim que a Lava Jato começou a ceifar figuras importantes da política nacional, e enxovalhar a reputação geral dos partidos, estes iniciaram imediatamente a mudança de nome. Os exemplos se multiplicam indefinidamente: a legislação eleitoral muda a cada dois anos. O STF vai e volta em decisões de acordo com o quadro político. Quando a burocracia apresenta uma falha estrutural, a solução vem na manga da camisa: fazer um recadastramento quando o público estiver envolvido, mas se os envolvidos forem os burocratas, a solução é uma reforma administrativa que consiste em mudar de nomes, preservar os cargos existentes, criar novos cargos, aglutinar pessoas – de preferência com novas funções e privilégios – e, depois, permanecer como sempre foi.

A Reforma da Previdência nem sequer chegou a final da tramitação e já temos anunciado que não será definitiva. O novo governo em 2023 deverá refazê-la.

Em períodos de crise, as operações proteiformes chegam ao cume de uma agitação espiritual frenética. Propõe-se mudar tudo, e um novo governo, seja municipal, estadual ou federal, coloca em movimento as mudanças funcionais que vão dar um toque de eficiência ao novo mandato. Mas tudo, naturalmente, continua como dantes: a cultura da mudança que não muda nada inspirou o título A Insondável Matéria do Esquecimento do meu último livro. Porque as mudanças são feitas para encobrir ultrajes, apagar vestígios, eliminar suspeitas, limpar reputações e produzir o esquecimento. E só. Em pouco tempo os nomes serão outros e ninguém mais se lembrará do passado que desaparece com novas siglas. Desde o descobrimento, o Brasil já está na quarta capital federal e, se bobear... cala-te boca.

Por natureza, o brasileiro tem a solução para "distorcer a sombra da vara torta". Só não sabe corrigir a causa primordial, o húmus de onde provêm as estratégias para que se esqueça do fracasso: a corrupção, que é a matéria viva e pulsante de nossa organização estatal. Esta não morre. Para manter a causa de todos os males é preciso estar mudando tudo, permitindo que os espertalhões sejam capazes de encontrar uma brecha no novo terreno por onde vão se esmerar em novas pilhagens.

Em meu artigo sobre o Sagrado e Profano no século XVII, falando do México, citei Octavio Paz: “Para Paz, a história é uma obsessão entre a grandeza e o esquecimento. Os povos têm uma relação com a história como a mente humana com a censura psíquica: ambos usam o esquecimento para evitar os fatos desagradáveis de seu passado.”

Não temos muita coisa para falar da grandeza do país porque nossos momentos estão tomados pela baixeza. Todo dia tem lama nova para se chafurdar. E o esquecimento tem outros paradoxos: quando alguém revira o passado e aponta as verdades, fruto do trabalho de uns poucos pesquisadores privilegiadíssimos pelo método e perspicácia de perceber do que se compõe “a insondável matéria do esquecimento”; os “esquecidos” não querem saber da verdade. Preferem as novas interpretações, novas narrativas dignificantes e, com ela, o perdão aos cafajestes, que funciona como a censura psíquica capaz de evitar que o passado tenha sido exatamente como o presente, porque ele sempre é louvado ou maldito conforme o interesse do "memorialista" pois, afinal, nada pode ser tão horrível quanto o que hoje está sendo presenciado como a mudança do nome da operação Lava Jato pelo procurador que ainda não tomou posse, mas já tem em mente a solução para a corrupção no país. Agora, a popularíssima conquista social de dezenas de mobilizações, com milhares de pessoas nas ruas, portanto o símbolo nacional de uma época, a chamada Operação Lava Jato, vai mudar de nome. É preciso apagar da mente do povo aquilo que ele passou a usar como identidade coletiva de um momento do país.

A corrupção tem princípios, tem aprendizado, tem sutilezas e muita soberba, e para um país atrapalhado entre a moralidade do altruísmo e a benevolência intrínseca das práticas de aliciamento de cumplicidades, todos os discursos políticos, os editoriais e os opinantes do mundo oficial conduzem os “esquecidos” para o evangelho das virtudes de que basta os homens serem bons para tudo mudar. Angelicalmente.

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

O medo do PT

Carlos U Pozzobon

Ficou claro para quem acompanhou a corrida eleitoral de 2018 que a acachapante vitória de Bolsonaro não estava relacionada com o discurso que este desenvolveu ao longo da jornada. De fato, ele não desenvolveu qualquer discurso significativo. O atentado que quase levou sua vida, forçou-o a um recuo de campanha que poderia ser fatal para sua candidatura se ela dependesse de sua mobilização pelo Brasil em resposta à exiguidade do tempo de TV de que dispunha.

Sua vitória deve-se muito mais ao movimento que lhe deu suporte do que a seus méritos pessoais. E este movimento não teria sido vitorioso se não tivesse desafiado o governo e todas as instituições que gravitam ao seu redor, como os executivos estaduais e federal, os partidos políticos, o alto judiciário, a imprensa e setores do clero.

A antipolítica foi tão ostensiva, que seria de se esperar que Modesto Carvalhosa, anunciado autocandidato sem partido, teria sido o principal adversário de Bolsonaro se o TSE tivesse aceito candidaturas avulsas. Trata-se, portanto, de um movimento revolucionário sem outra pretensão que a eleitoral. Revolucionário, nos moldes do tenentismo da primeira República.


Compõem o bolsonarismo:
1- fundamentalistas, chamados de minions
2- intervencionistas
3- conservadores antipetistas por razões ideológicas e morais
4- os sem filiação político-partidária, prejudicados pela corrupção da gestão petista, aumento da violência, desemprego, etc.

O movimento fundamentalista pode ser percebido pela oposição baseada no ódio. O ódio social surge da desconfiança. A desconfiança sempre foi um dos elementos formadores de uma sociedade baseada em premissas de desigualdades de direitos com os privilégios de castas e onde a desonestidade é moeda corrente e suportada como intrínseca ao sistema.

A desconfiança, por sua vez, gera o ceticismo quando se torna evidente a defasagem do discurso exercido em nome do bem comum, mas usado para encobrir a fábrica de pobreza na desigualdade de alocação de recursos.

Esta realidade impede que o Brasil tenha um sistema baseado em ideais comuns e respeitado como valores fundadores de nossa sociedade. E impede até que sejamos reconhecidos e respeitados internacionalmente como portadores dos valores do Ocidente. A cultura autodepreciativa, o complexo de vira-lata, a idealização do futuro, são expressões de nossa nacionalidade atormentada pelos mesmos e eternos dilemas.

A desconfiança varia de tempos em tempos, mas na gestão petista passou a ser generalizada porque a corrupção foi a gênese que alimentou a teoria da conspiração.

Se todos roubam às escondidas e um processo como o da Lava Jato vai desvendando as entranhas do submundo político e social, tudo indica que existe uma realidade oculta do cidadão comum que conspira para espoliá-lo.

Se isto é verdade, por que suposições absurdas não o seriam? Neste caso, para convencer as pessoas basta uma produção poderosa de fake news capaz de levá-las a acreditar em fatos inexistentes, mas que sirvam ao propósito de exacerbar o perigo do mal encarnado pelo PT.

Se existir um grupo poderoso para levar à frente uma campanha de desmoralização dos adversários, em função de um beneficiário que esteja protegido da acusação de corrupção, qualquer restrição ao seu passado passa pelo crivo da própria conspiração urdida pelos petistas para denegri-lo.

Não é preciso mais a verdade quando o espírito sectário se instala na sociedade. Toda a crítica sacada contra o grande líder passa a ser propaganda do adversário e, com isso, mais um alvo de difamação por este crítico ser um agente disfarçado do inimigo.

Mas o espírito sectário não é o decreto de alguma autoridade ungida pela verdade. Ele precisa ser produzido intelectualmente. E foi o que ocorreu em paralelo com o período das administrações do PT e que serviu para ser sua extrema-unção.

Uma teoria conspiratória produzida pela falsificação dos fatos históricos, associada a uma doutrina messiânica emprestada da religião, agregada a correntes internacionais, foi a base pedagógica do maniqueísmo que permitiu a educação de seguidores no objetivo da atribuição do bem a Bolsonaro e do mal a todos os demais membros do espectro político nacional.

Esta preparação foi uma das causas da vitória, mas não a única e, paradoxalmente, só se mantém enquanto capaz de se associar aos frutos materiais da própria causa, como: crescimento econômico, emprego, melhor educação, segurança; e às medidas para alterar a configuração de nossa desordem crônica: a) o modelo político partidário eleitoral; b) as premissas do corporativismo estatal, igualando a legislação trabalhista para toda a sociedade; c) o modelo tributário e previdenciário; d) a infraestrutura do país.
Se os objetivos materiais não forem atingidos, e tudo indica que o serão de forma muito modesta, o esqueleto ideológico do movimento entra em osteoporose e em poucos anos desaba, limitando-se ao culto de pequenos grupos encantados com o fetiche de suas próprias ideias.

Como se pode ver, é possível esperar apenas algumas coisas dessas pautas. E bem poucas. E tudo leva a crer que o movimento bolsonarista começará a declinar como sempre tem ocorrido em nossos ciclos históricos: incapaz de realizar as reformas necessárias, precisará de apoio político para se manter no poder, e este só poderá ser conseguido com populismo, o que significa ir na direção contrária do planejado e prometido. E então a história se repete. Como em 64: fomos salvos do comunismo, prosperamos e, logo após, caímos na cilada da estatização – este socialismo tão querido aos brasileiros, e o regime fracassou.

A razão revolucionária não se importa com a mentira – os fins justificam os meios: para destruir os adversários, um batalhão de falsificadores de áudio editavam clipes de vídeo para colocar inimigos políticos se detratando, ora fazendo afirmações absurdas, ora elogiando ditadores, confundindo a opinião pública com alteração de declarações de personalidades em favor do candidato, se apropriando de ideias alheias e atribuindo paternidade a outras, e a sucessão de truques de desinformação praticados em escala massiva para obter o monopólio da oposição. São táticas de guerra revolucionária dos tempos da Internet usadas em escala massiva.

O fenômeno mais notável das eleições de 2018 foi a paranoia que se instalou com o medo de o PT vencer as eleições. O programa de bolivarianização do partido – que passou a ser perseguido enfaticamente depois que o modelo de compra de congressistas entrou em crise com a Lava Jato –, foi exaltado como um determinismo, caso Haddad ganhasse as eleições.

Não se sabe como o PT iria vergar um Congresso que seria majoritariamente oposição ao seu partido, e nem como poderia introduzir esses métodos sem a possibilidade de um golpe militar.

Em pleno domínio da situação com Dilma, o PT não conseguiu aprovar a lei dos meios audiovisuais que prometia o controle da imprensa. Em todo o caso, as aberrantes propostas do programa eleitoral do partido foram o combustível para a paranoia que se manifesta de forma antipolítica: o medo como recurso eleitoral é o pior conselheiro, e quase sempre termina com consequências desastrosas.

Foi, portanto, o medo o principal cabo eleitoral de Bolsonaro, um medo criado a partir de um perigo iminente, embora seus autores tenham ocupado o poder por 14 anos e falhado consecutivamente em realizar os próprios projetos.

A promessa do PT de anistiar Lula e reconduzi-lo ao Planalto como ministro foi o fato político mais aglutinador de Bolsonaro. Nenhum discurso, nenhum comício, nenhum apoio de personalidades públicas poderia ser mais eficaz a Bolsonaro do que a subordinação de Haddad ao presidiário de Curitiba.

Foi com base neste ultraje anunciado, e na possibilidade de aparelhamento da PF, do MP, e na anunciada perseguição a Sérgio Moro, que proporcionou a fuga dos eleitores que ainda pensavam em uma oposição alternativa à campanha de Bolsonaro.

Em outras palavras, a vitória de Bolsonaro pode ser creditada sim ao programa do PT e às suas propostas de campanha. Um partido dissimulado saiu do armário para anunciar que seu erro foi não ter transformado o Brasil num país bolchevique antes, durante, e logo após a Lava Jato.

Isto por si só valeu mais para consolidar a candidatura de Bolsonaro, pela natural propensão do povo de buscar refúgio em uma figura presidencial forte, do que pelas qualidades de suas propostas. Diga-se de passagem, que sua campanha foi alicerçada na antipatia da população exaurida com o comportamento partidário da imprensa em total submissão ao PT, e no simbolismo dos partidos políticos como ratazanas dos cofres públicos.

O atentado que lhe obrigou à retirada dos desfiles heroicos, com centenas de apoiadores gritando 'mito', 'mito', teve o efeito positivo na medida em que foi uma atenuante da inevitável radicalização de seus partidários e permitiu aos oposicionistas moderados se aproximarem de sua candidatura, desidratando os votos dos outros partidos, especialmente do PSDB, Novo e Podemos.

Uma das manifestações da paranoia se mede pelo sentimento de urgência de finalizar o processo eleitoral no primeiro turno. A circulação abrangente e totalizadora da ideia de que se Bolsonaro não vencesse seria a prova cabal de fraude nas urnas, foi consequência de uma suspeita alimentada durante anos por opiniões nunca conclusivas, mas engrossadas pela recusa do TSE/STF em adotar o voto impresso.

Para isso, o comitê de fakes news da ala intervencionista saiu publicando relatórios falsificados de resultados de urnas no Japão e outros lugares de votação, com a finalidade de criar a comoção para uma intervenção militar, ou o estado de agitação para levantes populares em todo o país, a exemplo da última greve dos caminhoneiros.

Clipes de denúncias alucinadas, de comoção aniquiladora que circulam sem qualquer suspeita ou comedimento por parte do distribuidor com relação à veracidade do conteúdo constituíram o perfil de uma eleição salvacionista, e nada pode ser mais sintomático do que anunciar a vitória de Bolsonaro antes da votação e a despeito dela, e a derrota como uma certeza decorrente de fraude eleitoral urdida pelo PT.

Este raciocínio é tão antidemocrático quanto supor que se pode suspender o escrutínio das urnas para fazer eleições por aclamação. No limite da paranoia, não são necessárias evidências do que se diz: a lógica previamente traçada dispensa qualquer comprovação fática. Pois os vídeos e fotos alterados já fizeram o trabalho de legitimação da fraude.

A inclinação pela lógica revolucionária levou muitos bolsonaristas a atropelar os dois turnos das eleições como se fossem dispensáveis para o exercício democrático, criticando acidamente aqueles oposicionistas que não votaram em sua candidatura no primeiro turno.

Como se, com uma margem eleitoral irrisória para conseguir a maioria de votos válidos no segundo turno, fosse a causa de uma frustração cuja culpa deveria ser atribuída aos demais oposicionistas.

Vale lembrar que quando Aécio Neves liderou a oposição a Dilma em 2014, ele obteve 33,55% dos votos no primeiro turno, e no segundo turno 48,36%; enquanto Dilma ficou com 41,59% (depois 51,64%) e Marina 21,32%. Ainda concorreram mais 5 ou 6 candidatos nanicos. Não houve qualquer ressentimento por parte dos tucanos de que adversários de Dilma tivessem votado em outros candidatos e nem de Dilma com os eleitores de Marina. Naquela ocasião, esperava-se a possibilidade de Aécio ganhar no segundo turno pelo apoio recebido de Marina.

A lição deste pleito é que Bolsonaro foi eleito para deter a avalanche petista. Isto não significa que seja capaz de mudar o país. Pode se prever facilmente o grau de euforia por ter quebrado o ciclo petista. Mas somente a realidade das reformas e o conteúdo das propostas, a capacidade de manter liderança a despeito da mídia, vai apontar o sucesso de seu governo, ou o embarque na tradicional política de tapar buracos para manter tudo como está para ver como é que fica.


segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Ideologia x política: Bolsonaro x Alckmin

Carlos U Pozzobon

O debate principal nesta eleição, sejam ou não eleitos, ficou reduzido a Bolsonaro e Alckmin, turvado pela ameaça constante da presença de Lula na urna eleitoral.

A seis semanas do pleito, não se lê nada além de análises do passado dos candidatos, suas condutas frente aos principais acontecimentos das últimas duas décadas e as relações com a Lava Jato.

Não passa despercebido ao observador quanto a quantidade e qualidade de argumentos favoráveis a um e outro candidato, o fato de Bolsonaro não ser uma candidatura política. E sua força provém justamente desta característica. O esgoto moral que veio à tona pela prolongada administração petista criou o espaço para o surgimento da antipolítica como uma força germinativa que não vai caducar nem mesmo com a derrota de Bolsonaro.

A razão disso é o fato de o Brasil necessitar de uma nova Constituição e estar com as instituições em frangalhos.

O esgotamento do sistema político tem suas matizes nacionais próprias, e no Brasil este modelo se mostra superado a partir da impossibilidade da atividade parlamentar dar resposta às necessidades urgentes de reconfiguração a partir do escândalo do Petrolão.


O surgimento do nome de Bolsonaro vem alicerçado nestas circunstâncias históricas que sem esses fatores não seria sequer considerado devido à precariedade de sua base eleitoral, sua liderança quase nula entre seus pares por sempre ser um outsider do partido que lhe hospedou, concorrendo para o interesse partidário somente pela distribuição do quociente eleitoral de sua base de votantes carioca, e na estigmatização de suas campanhas frente ao rolo compressor do petismo.

Não se pode entender Bolsonaro sem considerar o fato de que ele não é um candidato, porém uma candidatura, e esta diferença explica mais do que se imagina. Trata-se de uma opção essencialmente ideológica, tendo como cerne o combate à corrupção que foi decidida dois anos antes da oficialização das candidaturas como forma de preparação da sociedade para a vinda de um salvador que resgatasse as instituições da bola de neve de imoralidade que o petismo desencadeou. Seus aderentes são em sua maioria pessoas que decidiram militar em seu favor antes e a despeito de qualquer outra candidatura, comprovando que se trata de um movimento com traços fundamentalistas, onde a paixão emocional tem superioridade ao uso racional da prudência comparativa.

Bolsonaro foi escolhido por movimentos agrupados em torno do milenarismo, começando pelos grupos que financiavam a promoção do nome de Olavo de Carvalho como o filósofo que “tem razão” no contexto de um pensamento que haveria de se impor de forma espetacular para um público desorientado pela agonia intelectual causada pela adesão da Academia ao petismo. Como num passe de mágica, durante alguns meses, o filósofo foi propulsado de um jornalista combativo nas colunas de jornais, mas pouco conhecido, no sábio mais reverenciado e o intelectual mais importante no país. Suas lacônicas análises da conspiração representada pelo Foro de SPaulo serviram de alicerce para aglutinação de setores do amplo espectro que engloba os intervencionistas, os militares de reserva ofendidos pelo revisionismo da Comissão da Verdade, os conservadores teocráticos e medievalistas, os nacionalistas do nióbio de Enéas Carneiro, os produtores rurais acuados com a ilegalidade intocável do MST, e de uma geração de pseudo-liberais formados na pressa da absorção de clássicos estrangeiros mas completamente ignorantes da cultura nacional.

Foram estes movimentos aglutinados que escolheram Bolsonaro pouco antes do impeachment de Dilma Roussef a despeito de qualquer outra variante existente no período de 28 meses que antecedeu o pleito. Para estes seguidores, a decisão de votar em Bolsonaro não se tratava de uma escolha política, porque não era uma escolha baseada nas candidaturas, que sequer existiam à época, mas num gesto de adesão às ideias morais expressas no combate à ideologia de gênero, à politização das escolas, à imoralidade da erosão dos valores familiares, e à necessidade de recuperação moral do país a partir da figura presidencial - crença surgida como resposta da própria existência de Lula como o vértice maior dos males do país. Se uma figura presidencial foi capaz de degenerar o país, uma outra seria capaz de regenerá-lo.

Assim, como resposta, Bolsonaro foi a figura providencial que se encaixava na retidão moral imprescindível para desfazer o sistema político através de um trabalho que, por antecipação, conseguisse emocionar as massas para produzir a grande virada.

Para isso, era preciso criar no ambiente político aquilo que o olavismo já tinha feito no ambiente intelectual: a disseminação do maniqueísmo expresso na dualidade da teoria das tesouras, como nivelamento de diferenças políticas, e na necessidade de combater o sistema como um todo, corroído até a medula pelo Petrolão.


Este projeto nasceu para identificar a corrupção com a pluralidade partidária, e jogar na vala comum as diferenças fundamentais da atuação política nacional. Assim, os partidos seriam diferentes no gogó parlamentar, porém na prática, uma unidade subterrânea de interesses pessoais associava diferentes agremiações em uma só direção: a divisão do butim dos órgãos públicos e estatais.

Isto foi o suficiente para que parcela significativa da sociedade aderisse de imediato ao projeto bolsonarista de redenção nacional, esquecendo de alguns detalhes importantes que haveria de fortalecer seu principal oponente. E o principal elemento é que o chamado sistema, ou seja, aquilo que se chama o mecanismo brasileiro, se fosse possível reduzir a um nome, a uma única referência, a uma única palavra, este se chamaria Petrobras. A Petrobras é o sistema, e não combatê-la significa nada mais nada menos do que estar do lado do sistema. Ninguém pode se dizer contra o sistema e esperar que a parcela mais ilustrada da sociedade possa aceitar a manutenção da Petrobras como instrumento de pilhagem por um candidato da antipolítica. Essa omissão não evita a vitória de Bolsonaro, mas serve de agravo para se perceber que o sistema vai continuar agindo, e que tudo o que se pode opor a ele não passa de retórica nos aspectos secundários da vida nacional.

Certamente que Bolsonaro privatizará empresas e simplesmente fechará outras, por suas completas inutilidades para o país. Mas esta política apenas protela para seu sucessor a necessidade de interromper um monopólio que importa 80% do diesel consumido depois de 65 anos de existência, e que transformou a empresa em um emirado carioca.


Por sua vez, o lançamento da candidatura de Alckmin veio revestido da lógica política tradicional: escolha da candidatura pelo maior partido de oposição ao PT (eleitoralmente), formação de alianças e propostas de amplo espectro para a retomada do crescimento e a melhoria geral da administração pública na saúde, educação e segurança.

Alckmin representa a política na sua forma convencional: o enfrentamento dos problemas nacionais sem ideologia, como se fosse o interventor nomeado pelos acionistas de uma empresa responsável para salvá-la da falência.

Sendo um nome do sistema, Alckmin procura convencer os eleitores que se propõe a romper com o ele: avisou que vai acabar com o monopólio do refino, visualizando a retomada de investimento nas refinarias bombardeadas pela artilharia da corrupção e fazer o Brasil se tornar autossuficiente e, inclusive, exportador de derivados a partir do novo modelo energético, que inclui a privatização da Eletrobras.

A ideia parece boa, mas corre perigo. A proposta significa manter a existência da Petrossauro atuando em defesa própria com a aliança dos petroleiros, associada à esquerda estudantil barulhenta e a direita nacionalista zelosa de perder contratos na estatal em torno do mito (este sim verdadeiro) da identificação da Petrobras com a nação. Não é difícil imaginar que a sabotagem será de ordinário exercida com forças políticas que não podem ser negligenciadas, seja como causa para a ressurreição do petismo, seja como necessidade de recuperação do sindicalismo ofendido pela reforma trabalhista, que provavelmente inibirão investimentos estrangeiros, ou atrairão aventureiros descomprometidos com o setor, para impedir que a Petrobras vá à falência por impossibilidade de concorrer com o setor privado.


Um dos nossos historiadores de boa prosa, J M Pereira da Silva, dizia que as sementes do mal são mais profundas do que as do bem. E quando essas sucumbem às turbulências políticas, aquelas renascem com maior viço. Mudar a política energética da área de hidrocarbonetos deixando a Petrobras viva, pode ser tão fatal para o futuro de Alckmin quanto a camiseta que vestiu com o nome da estatal no debate eleitoral de 2006. As raízes profundas do Petrolão dispensam qualquer esforço de argumentação.

Não se pode negligenciar a batalha judicial decorrente, as sabotagens dos petroleiros capazes de produzir uma anarquia no país com a escassez derivada do boicote na distribuição de combustível, os arranca-cabelos dos investidores das ações da estatal na bolsa de valores, e a imobilidade trazida para um governo com uma agenda de reformas urgentes.

A fúria consequente de provar que o rei está nu sem leva-lo ao cadafalso pode representar o estopim de uma espiral de crise que levaria a esquerda histérica e a direita nacionalista para a composição de forças, a ponto de forçar Alckmin a abandonar a privatização do refino para conseguir avançar sua agenda no Congresso. Nesta visão pessimista, a privatização da Petrobras teria de ser postergada para o futuro.

Se tanto Bolsonaro quanto Alckmin vão se dedicar às reformas, a diferença entre ambos é que Bolsonaro terá de se reinventar a cada semana, pois não tem experiência administrativa e certamente terá de passar pelo purgatório da burocracia sem conseguir sair de seu labirinto por falta de entendimento da realidade sufocante que a desprofissionalização petista impôs ao estado.

Para se ter um ministério de qualidade, implica em possuir conhecimento prévio de sua gestão. E nenhum dos nomes da equipe de Bolsonaro jamais teve contato com os meandros da administração pública.

Na saúde não basta o conhecimento ambulatorial e hospitalar: é preciso conhecer a burocracia federal respectiva; o mesmo ocorre nos transportes, mineração, educação, segurança e sobretudo na área ambiental. Sem este conhecimento que só é produzido por pessoas integradas na gestão específica de cada órgão e na experiência parlamentar, dificilmente poderão reparar os vícios da administração pública, uma vez que ela foi toda montada em uma narrativa ficcional de lisura e bons propósitos de uma tradição nunca rompida na nação que formou o Estado como representante do interesse público.

Não é preciso recorrer a Max Weber para saber que as aparências de uma administração estão bem escondidas pelas lantejoulas de uma funcionalidade para deslumbrar marinheiros de primeira viagem. A recente passagem de Rabelo de Castro pelo BNDES ilustra bem o que pretendo mostrar: o recém-chegado não consegue livrar-se da atmosfera de endeusamento que a instituição cria em torno de si, resultado natural da cultura do privilégio, pois se os 17 excelentes salários anuais da instituição forem verdadeiros, pode-se esperar que criam a mais enlevante atmosfera de excepcionalidade profissional, especialmente quando ao pisar para fora da porta do edifício sede, a sociedade que ali transita já não mostra nos semblantes os mesmos encantamentos dos seus frequentadores. Que esta euforia tenha sido objeto para a proposição do brasileiro como Homem Cordial, mostra muito bem como se pensa pequeno.

Quem conhece as entranhas do estado brasileiro percebe que se trata de um teatro para inglês ver e o mais comum são os arranjos interpessoais de funcionários agindo no interesse próprio no mais descarado e repugnante patrimonialismo de uma micro, mini e às vezes macrocorrupção em alta escala. Este diagnóstico se encontra em nossa literatura de qualquer período histórico. Trata-se do resultado do estatismo e da deterioração institucional garantida pela estabilidade do servidor, dos procedimentos recursivos e da mútua proteção que envolve o toma lá-da-cá das transgressões praticadas como expediente administrativo e da ausência de sanção neutralizada pela complacência de não gerar conflitos que causem urdiduras contra o disciplinador.


De Alckmin se pode esperar que saiba como contornar os meandros políticos para fazer avançar o processo ainda que seu estilo “devagar e sempre” seja insuficiente para as urgências da Nação, enquanto Bolsonaro, não tendo estes requisitos, indica que terá enormes dificuldades de promover mudanças para fazer o dromedário andar.

O que o quadro eleitoral indica é que se Bolsonaro sair vencedor, terá de renunciar ao ideologismo e avançar na política funcional. E se Alckmin for eleito, terá de sair da política para dar satisfação às demandas ideológicas da sociedade devido a indecência causada pela propagação das novas ideologias das minorias.

Ninguém consegue governar sem o Congresso, e quem não entende isso, não saiu ainda do pensamento primário de que se pode dirigir um país continental por algum efeito de mágica. A insistência no desprezo à composição qualitativamente diversificada do Congresso, abre as suspeitas para que um candidato pretenda se tornar ditador, imaginando que sob seus decretos todo o país ingressaria em um período de paz e tranquilidade. Esta ilusão já causou muitos estragos, especialmente quando se sabe que nenhuma sociedade pode melhorar se ela não sabe escolher os melhores. E a agonia do nosso tempo consiste em o povo não ter a quem escolher nos pequenos municípios onde se geram a maior parte da representação dos cargos eleitorais. Em consequência, o Congresso sempre será uma casa onde a corrupção vai estar presente, especialmente quando o modelo eleitoral requisitar cada vez mais recursos para vencer as disputas. Negar a convivência com a corrupção incontornável pelo próprio modelo político e estatal em nome de uma pureza moral sempre fez parte dos movimentos revolucionários. Que, diga-se de passagem, raramente acabaram bem.

É nesse ambiente que vamos para as eleições: se Alckmin não tem jeito para assumir a postura “rouba mas faz” que garantiu superioridade política à direita em diversos momentos nacionais, ele ao menos deveria bater forte na degeneração do sistema de ensino (não se refugiando em estatísticas), na picaretagem ambiental, no cabresto cultural da Lei Rouanet e nas odiosas estatais parasitárias. Deveria ao menos saber lidar com o vitimismo que tem gerado multidões de votos e vir a público mostrar suas obras e no que o Petrolão negou à população durante sua administração, no desfazimento de contratos, atrasos e assim sucessivamente em fatos e casos, procurando captar a atenção para o país da situação dos estados em que não houve passagem do PT pelas administrações, como São Paulo, Paraná e Santa Catarina, relativamente capazes de suportar a recessão e, sobretudo, apresentar um plano consistente de infraestrutura para o país baseado em sua experiência no estado de São Paulo.

Bolsonaro por sua vez, se apresentando como um homem que tem uma missão a cumprir na vida política, mal suspeita que está lidando com um sentimento fundamentalista de alguém que recebeu um chamado divino próprio do redentorismo. Um Messias possui uma força moral extraordinariamente grande, mas ela é fogo de palha. Serve para eleger, mas não serve para governar. E aqueles que estiveram hipnotizados por suas palavras em pouco tempo vão medir os efeitos na métrica dos resultados. O vitimismo dosado diariamente para justificar os parcos resultados como decorrentes da realidade herdada tem prazo de validade. Somente ditadores conseguem se apoiar na retórica de suas pequenas conquistas morais indefinidamente. E é isso que faz de Bolsonaro o mais combatido de todos os candidatos. E também é isso que faz seus adversários o compararem com Lula. Se eleito será o mais vigiado de todos os presidentes que o país já teve. E se enveredar pelo caminho da acumulação do poder pessoal – como a proposta de aumentar o número de membros do STF para seus escolhidos garantirem a maioria, e não a criação de um CNJ com controle externo –, vai criar uma oposição intensa de unidade nacional contra ele, envolvendo o espectro político que se opôs aos militares 50 anos atrás, desde a esquerda sectária até os liberais e todos os que de alguma forma estiveram contra ele com base no “eu avisei”. Se o povo conseguiu derrubar um presidente com a indiferença da imprensa, imagine com seu apoio maciço.

Ortega y Gasset chamava o conflito de direita e esquerda de hemiplegia mental. E setores da opinião pública sabem disso quando sentem que o bolivarianismo foi uma resposta fracassada aos regimes militares da América Latina que também fracassaram trinta anos atrás. As redes sociais se prestam ao papel de não só interromper a alternância destes ciclos, como ajudar a combater a amnésia histórica que nos castiga.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

A maioridade do FORA PT!

Carlos U Pozzobon

As manifestações que consolidaram a oposição nas ruas, e que haverão de levar milhares ao 15 de novembro de 2014, não foram capazes de sensibilizar a imprensa desde o seu nascedouro, mas, passando como um rolo compressor sobre a indiferença cúmplice de órgãos falaciosamente zelosos na defesa da opinião pública, conseguiram surpreender as avestruzes da mídia depois da explosão atômica das redes sociais na campanha de Aécio Neves.

Agora, finalmente, a mídia descobriu o ovo de Colombo: uma manifestação de rua reúne tanta gente heterogênea que para ser representativa de uma corrente de opinião, são necessários carros de som carregando voluntários bradando palavras de ordem, e não mais centenas de cartazes pedindo o JULGAMENTO DO MENSALÃO, ou associando a CORRUPÇÃO com o PT, como se via desde 2010.

Para Augusto Nunes “os envolvidos nos protestos de 2011 nunca souberam direito quem eram e o que queriam. Como voltaria a acontecer em junho de 2013, os manifestantes sucumbiram à crise de identidade, à inexistência de objetivos claramente definidos, à falta de palavras-de-ordem que evitassem a dispersão”. [http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/direto-ao-ponto/ao-contrario-dos-manifestantes-de-2011-os-indignados-que-voltarao-as-ruas-em-15-de-novembro-sabem-quem-sao-e-o-que-querem/].

Esta análise mostra um erro comum da imprensa, mesmo quando bem intencionada. Ora, os envolvidos em 2011 sabiam sim o que queriam. Queriam o julgamento do mensalão. E não estavam sós; nunca estarão sós. As ruas têm a propriedade de atrair os mais disparatados grupos em qualquer lugar do mundo, quando não convocados por um partido. Há gente que vai protestar contra os salários dos aposentados, contra o atendimento nos hospitais e postos de saúde, contra maltratos a animais, e até pela liberação da maconha. Eu mesmo participei de manifestações cuja adesão crescia a olhos vistos, oscilando misteriosamente e, numa delas, em que calculei 8000 pessoas, vi Augusto Nunes aparecendo na cola da massa que descia a Av. Consolação em direção ao centro de São Paulo. Estava duas horas atrasado. Nada apareceu na Veja porque foi interpretada como heterogênea demais para ter um significado político preciso. Mas o pessoal de 2011 era o mesmo de 2014. Quem mudou foi a imprensa, não os manifestantes!!!

Como começar um movimento sem ser heterogêneo? As pessoas mais instruídas, que conhecem a marcha economicida do populismo, sabem que um bando de baderneiros não vai ficar indefinidamente nas manchetes dos jornais, apenas porque seus atos, não sendo pacíficos, podem dar o brilho pirotécnico de que precisam os telejornais para atrair telespectadores. Os embrutecidos pela inflação e pela escassez vão dar as caras nas ruas em qualquer governo bolivariano, mais cedo ou mais tarde. Basta esperar.

Na verdade, nunca teremos conhecimento total das motivações das pessoas em uma passeata GENÉRICA. Se 10 em 100 manifestantes carregarem cartazes contra a corrupção e ninguém mais carregar nenhum cartaz diferente, dizemos, genericamente, que as 100 pessoas marchavam contra a corrupção. Entretanto, quando examinamos detalhadamente, vemos que não é bem assim. No limite, pode ser que apenas 10 pessoas estejam marchando contra a corrupção e as outras 90 divididas entre diversas causas.

Em junho de 2013 participei de cinco manifestações, o que me permitiu uma análise dos presentes dividindo-os em 3 grupos: 1) os que ainda apoiavam o governo do PT; 2) os que o haviam apoiado no passado e; 3) os que nunca o apoiaram. Meu foco era, naturalmente, o grupo 2, pois ali é que estava ocorrendo o fermento da transvaloração, a mudança qualitativa no processo político que de fato veio crescendo e se manifestou no resultado eleitoral. Chamei diversas vezes a atenção para este fenômeno. Mas, os jornalistas de rua ─ em geral engajados ao PT ─ dão o tom das mentiras que terminam circulando nos jornais do dia seguinte, enquanto os respeitáveis comentaristas que não levantam do sofá, caracterizavam as manifestações como atípicas, incoerentes, incompreensíveis, e até mesmo, acreditem, de esquerda contra o governo de esquerda! Naquela data, a juventude gritava “o povo acordou”. Um ano depois estava gritando “fora PT”. Não era outra gente. Era a mesma gente que amanhã estará nas ruas ainda mais indignada contra as consequências da inflação, e que hoje ainda abriga amigos e parentes que se resguardam na crença de um Papai Noel onipotente chamado governo.

O resultado é que, em 2014, aquela heterogeneidade se converteu em homogeneidade com o propósito de eleger Aécio Neves. E a sua vitória só não foi avassaladora pela estratégia fraudulenta de contenção utilizada pelos institutos de pesquisa, colocando a candidatura de oposição na irrelevância das pesquisas eleitorais para manter o povo desmotivado nos meses que antecederam a eleição. Se essa estratégia não tivesse funcionado, e a onda de 2013 se repetisse ainda em agosto, São Paulo teria arrastado o resto do país com apenas mais 3 semanas de mobilizações, e o resultado eleitoral seria outro. Não houve o levante do resto do país como ocorreu em 2013 por falta de timing e também por incompreensão do PSDB de aliar seus comícios à estratégia eleitoral, em lugar de carreatas e passeios públicos do candidato no pós-copa.

Os indignados de 2014 são os mesmos de 2013, com a diferença de que os grupos radicais de esquerda que estavam misturados e assumiram o protagonismo no final dos protestos, em plena dispersão da massa ordeira, ameaçando jornalistas, quebrando câmeras de cinegrafistas e incendiando os carros de emissoras de TV, foram discriminados e rejeitados pelos manifestantes. Por causa disso, tornaram-se os vilões do movimento. Não foram poucos os jornalistas de sofá que se escandalizaram com a contradição de milhares (chegaram a 13 milhões em todo o país) de pessoas nas ruas e o foco não ser o descontentamento popular com o governo, porém as demonstrações acintosas dos black blocs. A imprensa sequer observou fatos relevantes acontecendo em meio a movimentação: a tentativa de grupos sindicalistas (considerados os senhores das ruas) de ganhar espaço com as bandeiras do PT em punho, para transformar a manifestação a favor do governo, o que resultou em revolta espontânea, apreensão e queima das bandeiras, além de expulsão do grupo, como aconteceu na av. Paulista. Se isto ocorreu em um setor localizado da manifestação, o que se pode dizer da generalização da massa que lá se encontrava? Esta demonstração evidente do espírito da massa, não foi o suficiente para a imprensa perceber que um contingente considerável estava contra o governo. Foi tratada como massa ignara ou fenômeno atípico, inqualificável ou manipulado pela esquerda, quando era, na verdade, o princípio do que hoje está cristalizado como o FORA PT.

Como poderia ser diferente? Poderíamos esperar que partidos políticos que não fazem demonstração de rua, que não mantém uma militância paga e organizada, pudessem estar no comando de uma manifestação, quando os políticos morrem de medo de aparecer no meio de uma massa desconhecida? Aqueles que perseveraram nos protestos contra o governo hoje podem se sentir vitoriosos. Mas não se enganem senhores jornalistas: os arruaceiros vão voltar e com uma carga de violência ainda maior. Eles detestam competir com o povo pacífico e ordeiro. Eles detestam ver a multidão bradando contra o governo. Eles precisam do domínio das ruas para impor sua agenda estapafúrdia e confirmar a popularidade do governo que lhes serve com o bolso. Eles vão cometer as ações que fazem sucesso nas fotos e manchetes. Mas eles não são o povo, não são os manifestantes, não são o espírito da nação, e só quem é estúpido ou mercenário pode atribuir-lhes créditos.

Nós que queríamos o julgamento do mensalão naquela época, fomos recompensados parcialmente. Agora estaremos nas ruas, queiram ou não queiram os jornalistas (aceitem ou não o erro de achar que o povo mudou, quando o que mudou foi apenas o desenrolar do tempo em uma direção, este mistério que a imprensa não é capaz de perceber), pois temos a certeza de estar com a verdade, e que nossa campanha vai representar a dignidade dos brasileiros contra o estado institucional do país. Podem nos avacalhar, silenciar, insultar. Responderemos com a longanimidade que faz com que a nossa causa já brote com a força vertiginosa do IMPEACHMENT JÁ, porque sabemos que a presidente tem responsabilidades sobre os crimes contra a Petrobras. E não nos importa a sopa de despistes da imprensa. Nos importa apenas a serena confiança de que somos a opinião pública e não a imprensa. Ela nos segue se quiser. Nós não nos subordinamos a ela.


quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A inocência do PT

Carlos U Pozzobon

Depois de todas as evidências e condenações, ainda resta saber por que o PT insiste em defender seus militantes. Não creio que seja difícil descobrir as motivações que os levam em direção contrária ao comportamento dos outros partidos também réus do mensalão.

Quando o governador Roberto Arruda foi denunciado, e, tempos depois, o senador Demósthenes Torres, a direção nacional do DEM, seu partido, expulsou-os sumariamente, ainda antes da formalização de um processo de culpa, baseado apenas nas denúncias apontadas. No caso do DEM, verificamos que a moral não pertence ao partido, mas aos seus membros. Se um militante sai dos trilhos, é abandonado e colocado para fora. Não no caso do PT, para quem a moral individual inexiste, somente a moral social. A moral social implica em entender a sociedade capitalista como um mal em si, que deve ser destruída pela ação partidária, justificando todos os excessos que não se limitam ao desvio de dinheiro público, mas até mesmo de atos repulsivos, como o assassinato de companheiros que não se subordinam às instruções do partido, como foi o caso de Celso Daniel.

A moral é a do partido e, portanto, se os seus membros cometeram delitos e o partido os nega, todos os seus militantes passam a negar, mesmo quando condenados pela mais alta Corte da Justiça, à qual veem como um ‘tribunal de exceção’.

Por que isso? Qual a causa motora de semelhante comportamento? Creio que se encontra nos fundamentos da doutrina petista. Entendendo a sociedade como MORALMENTE INJUSTA, os petistas têm uma visão revolucionária de justiça, aquela que postula a tomada do poder para atingir outra sociedade, valendo nesta transição todos os jogos inescrupulosos para acumulação de poder. Para transformar a sociedade, é preciso usar seus instrumentos e, para isso, estabelecem um discurso de suposta sujeição às regras do jogo, que na verdade serve para mascarar um segundo discurso de subversão a essas regras, para fins particulares e internos. São assim postulantes da democracia por conveniência e se destacam dos demais atores da cena política, que são democratas por convicção. Essa diferença de atitude é revelada pela proteção aos "infiéis". Para um democrata por convicção, um delito é sempre algo individualizado. Para um democrata por conveniência, um delito só existe fora do seu núcleo de vanguarda, para atender aos interesses do partido, mesmo que alguns membros tenham ficado ricos. Ele só passa a indivíduo quando trai o partido. E nesse caso...

A defesa dos mensaleiros feita por setores até mesmo simpatizantes do PT (para não falar da cúpula não envolvida no processo) tem assim a premissa da defesa de uma sociedade imaginária, onde a retidão moral seja obrigatória, e onde os seres humanos não cometeriam delitos de corrupção porque não haveria sequer a propriedade para conspurcar esse ideal.

Isso explica a coerência interna do partido. Afinal, se o PT defende um regime homicida como o de Fidel Castro, cuja nomenclatura se apropriou de toda a ilha, por que não haveria de defender seus membros envolvidos em delitos de desvio de dinheiro para fins partidários? Comparado com os crimes cometidos por dirigentes internacionais que o PT apoia, o mensalão é mesmo uma coisa muito pequena.

Mas se o que está em julgamento é o mensalão pelo STF, o que a sociedade precisa entender é que assim como eles se eximem de qualquer culpa moral pelos delitos que praticam, merecem serem banidos da vida política da nação com a mesma generalidade, isto é, de amoralidade inaceitável para o jogo democrático e banimento perpétuo de todo o partido e de seus membros, tal como costumam fazer com seus adversários quando tomam o poder. A democracia é um regime que está sob constante ataque, por isso precisamos aprender a depurá-la de seus inimigos. Ela só existe verdadeiramente na CONDUTA, e aqueles que, em partido constituído, não se inserem em sua égide, devem ser banidos da vida pública. Espero que o processo do mensalão seja o estopim para um avanço institucional no sentido de não permitir partidos políticos que não tenham o perfil adequado ao debate democrático, já comprovado pela PROCLAMADA cumplicidade nos delitos de seus dirigentes.


sexta-feira, 10 de agosto de 2012

A crise que virá

Carlos U Pozzobon

Escrevo este artigo em 10 de agosto de 2012. Faço questão de registrar a data para defender meu ponto de vista com relação à crise que se avizinha. Ou confessar meus erros altivamente se os rumos dos acontecimentos forem em direção oposta. Não sabemos quando o descalabro da inflação irá forçar a população a uma mudança de atitude. Sabemos apenas que ela virá, e com ela uma nova fase no calvário das calamidades brasileiras recicláveis.

Wilson Martins, em sua obra monumental ‘História da Inteligência Brasileira’, no tomo VII, ao se deter nos acontecimentos dos anos 60, no Brasil, não consegue esconder sua perplexidade. Citando um artigo seu de 1959, advertia: “O nacionalismo e, em particular, o nacionalismo primário, sentimental e intolerante [...] transformou-se, já agora, numa espécie de grave neurose brasileira; mais ou menos latente em toda a nossa história, ele aparece por irrupções bruscas, como as epidemias, e causa tantos males quanto elas. O Brasil sofre da mania de perseguição colonialista – é ela a responsável pelo nosso alheamento da realidade. Resultante de velho complexo de inferioridade – compensado e sublimado delirantemente pela criação de estereótipos os mais inconsistentes – ela alcança, neste momento da vida nacional, formas verdadeiramente patológicas, erigida que está em política, em programa da vida coletiva. É que uma grande parte do povo brasileiro deseja doentiamente preservar alguns valores vazios de conteúdo, agarra-se, justamente, por paradoxo, à constelação mental que caracterizava a sociedade luso-brasileira e deseja imobilizar o Brasil no instantâneo de um dos seus momentos históricos. Esse "velho País colonial", para conservar a terminologia de Jacques Lambert, opõe-se, com a força indestrutível da inércia, servida pela agressividade emocional, ao "País novo" e progressista, que compreendeu a permanência do Brasil sob as suas diversas fisionomias sucessivas e que responde às solicitações do momento em que vive. Se, até agora, entretanto, o "velho País colonial" representava a maioria absoluta, do ponto de vista demográfico, estamos chegando a um ponto em que as duas forças antagônicas tendem a equivaler-se e a partir do qual as correntes do progresso, da identificação com o seu tempo e com a "essência" brasileira começarão a prevalecer. A onda nacionalista que atualmente nos submerge bem pode ser a febre desse minuto culminante do conflito: explorada e mantida por interesses políticos que, precisamente, e por escárnio, nada têm de nacionais, nem de brasileiros, sua permanência e duração, seu alcance efetivo e a influência real que puder exercer decidirão, por muitos anos, do nosso destino coletivo".


A primeira onda de esquizofrenia veio com a Revolução de 30, especificamente a agitação nacional que culminou na morte de João Pessoa, candidato derrotado a vice-presidente nas eleições em que concorria com Vargas. João Pessoa foi assassinado em um crime passional em Recife em decorrência de uma tentativa de outro coronel estabelecer um governo separatista na Paraíba de onde era governador. Sua morte despertou o estopim da revanche política protagonizada por Getulio com o apoio de Minas Gerais. O cadáver de João Pessoa foi tribuna para a agitação política que se iniciou em Julho de 1930 e cujo féretro foi enviado de navio de porto em porto, onde sucediam-se comícios e quebra-quebra para condenar o governo, urdido como o verdadeiro conspirador para assassinar João Pessoa. O que se pode chamar de caráter esquizofrênico consistiu na mudança de opinião do povo que poucos meses antes havia eleito Julio Prestes e cujo tumulto arrastou as principais lideranças empresariais e agrárias reunidas na Aliança Liberal, com a finalidade de produzir mudanças no país, assolado pela crise de 29.


A nova febre de esquizofrenia ocorreu a partir dos anos 60 quando Brasília se transforma na nova capital. Como sabemos, foi a indústria automobilística que teve de dizer para Juscelino permitir a instalação de suas montadoras no Brasil para livrarem o país de sua penúria nas contas externas com a importação cada vez maior de automóveis. Juscelino negociou a autorização e concessão das fábricas com os empréstimos para construir a capital federal. Como se tratava de investimentos passivos, terminada a capital federal inicia-se o período de pagamento dos empréstimos ao FMI. Mas como pagar se foram investimentos inócuos e sem retorno? O governo João Goulart, empossado com a renúncia de Jânio, percebeu a cilada que tinha caído e não teve outra saída senão desvalorizar a moeda e render-se à inflação. Mas o que fez o mundo político de então? Foi procurar seu bode expiatório na sociedade produtiva, e encontrou as tais de remessas de lucros para o exterior como a grande fonte da inflação. Não foi Brasília e a gastança governamental que tinham atolado os brasileiros. Foi a indústria automobilística que, poupando o governo de ter de gastar integralmente com carros importados quantias extraordinariamente maiores, remetia as primeiras quantias ao exterior para amortecer seus investimentos. E toda a sociedade escabelava-se com a ganância dos grandes “trustes” como eram chamadas as grandes empresas internacionais, como a causa da pobreza e da carestia na vida do trabalhador.


Agora estamos prontos para o próximo episódio. O surto de esquizofrenia virá com a consequente inflação causada pela maior crise de gestão da história brasileira pela extensão da incompetência governamental aliada à corrupção que se confunde com as políticas públicas. Como venho alertando desde 2009, a Petrobras é uma dessas causas: com dívidas de 27 bilhões em 2007, já bateu em 130 bilhões em 2012 e corre ladeira abaixo. Mas isso não é tudo: as contas externas começam a dar sinais de déficit crônico. Com reservas de 360 bilhões de dólares, o Brasil poderá resistir mais algum tempo, mas não se sabe quantos anos para que retorne a passar o chapéu ao FMI depois de arrogantes discursos nacionalistas de alguns anos atrás. Considerando que as despesas com o passivo da Copa do Mundo de 2014 deverão equivaler a uma nova Brasília, e acrescentando-se as obras inconclusas que, portanto, não reverteram em produtividade na economia doméstica, como ferrovias, estradas, transposição do SF, portos e aeroportos, podemos prever o aparecimento de um ou mais bodes expiatórios focados nas empresas privadas como a causa da crise, sempre e invariavelmente livrando o governo da responsabilidade pelo descalabro gerencial do país. Alguns professores uspianos já estão dizendo que é um absurdo a indústria automobilística ter remetido para o exterior 1,2 bilhão de dólares em 2011. Essa é a atmosfera da culpabilidade que retorna como um fantasma na mente estreita brasileira. E o espírito para que uma grande mentira possa ter uma grande repercussão em poucos dias já existe. Considerando a forma como setores dos partidos esquizofrênicos trataram a falácia do Pinheirinho, podemos ter uma ideia de como uma fraude pode se espalhar na consciência nacional e servir de peneira para tapar o sol da pusilanimidade instalada em Ministérios Públicos e na grande rede mercenária ameaçada pela crise. A história brasileira tem sido uma constante perda de oportunidades pela escolha do governante errado na hora errada. Existe um Brasil arcaico que já não é mais o mesmo do tempo de Jaques Lambert, identificado na figura do enxadista, do favelado e do analfabeto. O Brasil arcaico de hoje está nos partidos políticos exaltados da base aliada, no corpo docente das Universidades, ONGs, Sindicatos e Movimentos Sociais. Ele não é mais a vítima, mas a parte mais atuante da sociedade, e exatamente por isso, a causa principal do fracasso social continuado das administrações petistas. A grande reação ao descalabro governamental virá com uma causa externa, secundária, mas que vai servir para o despistamento da real situação do país. Não sabemos sua real extensão e consequências. Podemos apenas prever que não serão tempos fáceis e que viveremos aos sobressaltos de decretos expropriatórios, manipulações grotescas do poder, aumentos descarados de impostos e taxas e – com sua indefectível marca registrada –, a corrupção humilhante garantida pela impunidade dos intocáveis já comprovada no episódio da Delta.

sábado, 4 de agosto de 2012

O julgamento do mensalão pode ser nossa última esperança

Carlos U Pozzobon

O relatório do PGR Roberto Gurgel mostra a extensão da rede de suborno criada pelo mensalão. A ênfase com que ele repetiu na TV que o chefe da quadrilha era o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, através dos depoimentos de dezenas de testemunhas, muitas delas que sequer tinham relações entre si, não deixa dúvida sobre o teor da acusação. O que podemos esperar para as próximas semanas será o confronto entre a peça acusatória e a defesa dos réus, permitindo com isso fazer com que o público fique instruído sobre o que está sendo julgado. Não será uma tarefa fácil, posto que a distância entre a acusação e a defesa no caso de 36 réus, torna o processo factível de ser acompanhado somente para quem está muito familiarizado com cada um dos tópicos da acusação. Mas esse deverá ser o papel da imprensa séria que nos alimenta com os fatos confiáveis sobre a vida política nacional.

O fato mais característico no julgamento do mensalão é a reação que ele pode causar em uma sociedade que já o absorveu com outras técnicas. Como se trata de um estilo de corrupção que parece ter sido interrompido importa saber como ele foi geneticamente modificado para continuar produzindo os frutos da anuência social em torno do partido mais corrupto que já existiu na história da República.

Tal partido não se manteria com sua base eleitoral expandida se não tivesse em permanente processo de cooptação social. E a maneira como a imprensa se refere ao maior escândalo de todos os tempos mostra que, ao avançar sobre veículos de comunicação, com publicidade direta, ou compra de cabeças de aluguel através do financiamento direto de blogs de jornalistas, proliferando-se na vida pública do país com a disseminação generalizada de aditivos contratuais criados com os mais estapafúrdios argumentos para obras paradas, como a transposição do SF em que se assinou uma pesquisa do conhecidíssimo solo da caatinga para justificar o bombeamento de dinheiro pelas valas da política, ou da ferrovia norte-sul e transnordestina cujos desvios já se tornaram rotina não para os trilhos dos trens, cujas locomotivas a ela ainda não chegaram, mas para os comboios fantasmas de dinheiro rumo aos paraísos fiscais. Ou quem sabe as verbas fantasiadas de caipira no financiamento direto da Petrobras para milionárias festas de São João no hinterland brasileiro, com quentão e fogueteio garantido não só para os foliões mas, sobretudo, para a farra generalizada de aliados do partido. Ou o travestimento de cultura no sustento direto de eventos carimbados pelo tráfico de influência do jabaculê artístico, sem esquecermos a aprovação de projetos milionários e francamente superfaturados de renúncia fiscal pela Lei Rouanet para compositores e cineastas contratados para louvar a figura presidencial. Ou quem sabe com a assinatura de decreto-lei proibindo o TCU de investigar a destinação do imposto sindical para um dos esteios mais representativos do apoio social do governo. Ou as consequências da emissão de um decreto para evitar a fiscalização das obras da Copa do Mundo chamado eufemisticamente de Regime de Contratação Diferenciado. Ou a famigerada proteção de investigação do extraordinário faturamento da Delta na CPI do Cachoeira, com uma vexaminosa mensagem de SMS que revela a continuação da chamada “organização criminosa” quase dez anos depois da denúncia do mensalão com o cifradíssimo código: “você é nosso e nós somos teu”. Tudo leva a crer que o julgamento do mensalão é apenas o preâmbulo, um entreato de um estilo de fazer política em que a corrupção se tornou sua própria essência.

Afinal, o PT sempre anunciou que tinha um novo estilo de fazer política: e de fato a promessa foi cumprida. Esta foi sua nova política, e com ela a cumplicidade de sua plutocracia e a evasão ou omissão causada pela imoralidade corrente de seu desdobramento. Nesse momento, nosso interesse no STF não passa da curiosidade de saber se o pós-mensalão já foi capaz de contaminar também a Suprema Corte. O comportamento dos ministros, seus argumentos e votos será nossa última esperança, ou talvez a comprovação de que a metástase do mensalão já não tem mais socorro no firmamento nacional.


quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

A corrupção sistêmica

Carlos U Pozzobon

Por todos os lados se fala na corrupção. De repente, o Brasil descobre que a praga que infesta a Nação, desde o seu descobrimento, adquiriu uma proliferação tal que ninguém mais se sente confortável. A coleção de disparates sobre as causas da corrupção atinge proporções de festival de besteiras. Alguns praguejadores culpam o capitalismo, outros a ambição desmedida dos políticos, e há quem ache a corrupção uma inevitabilidade do gênio brasileiro.

Quando se analisa a sociedade, verificamos que existem espaços de troca em que a corrupção não tem vez: por exemplo, é impossível haver corrupção entre o comprador que compra para uso próprio e o vendedor proprietário. Portanto, uma sociedade de produtores e consumidores diretos não teria corrupção, isto é, duas pessoas que transacionam diretamente não têm como estabelecer um preço artificial.

Precisamos entender que para existir corrupção se impõe uma questão fundamental: entre aquilo que se compra e vende deve haver um representante, caso contrário, a corrupção inexiste. O representante pode ser um intermediário nas relações comerciais no mundo privado, que para isso toma todos os cuidados e auditagens necessárias a sua evitação, como pode ser o representante dos poderes públicos, que trabalham com o capital alheio, ou o chamado dinheiro público. Outra questão que favorece a corrupção é ambiental: ela é tanto maior quanto maior a burocracia de uma sociedade, cujas empresas têm seu gerenciamento forçado pelas normas do sistema político.

A corrupção pode, portanto, funcionar tanto no atacado como no varejo. No atacado, com o dinheiro público através de representantes envolvidos com grandes contratos: isso se denomina patrimonialismo. No varejo, pela ampliação da burocracia criada por leis e portarias que exigem mil coisas das empresas e indivíduos.

Tal não acontece em outras instâncias, como entre a empresa e o consumidor. Nas empresas que produzem bens de consumo de massa, a maximização do lucro é um fato que por si só reprime a corrupção. O lucro torna-se o próprio fator de vigilância e pressão sobre quaisquer arranjos que impliquem em sobrepreço. Enquanto o consumidor comprar com o preço mínimo, e enquanto a competição for um fato consumado a forçar os preços para baixo, a corrupção estará afastada, a menos que seja uma empresa suicida. O cálculo capitalista não deixa espaço para a corrupção. Porém, quando a relação capitalista migra para a esfera empresa-governo, os paradigmas mudam completamente.

Toda a empresa cujo lucro provém de escolhas, indicações, relacionamentos, contatos, conchavos, aparelhamentos, partidos políticos, organizações intermediárias, favores, parentelas, é uma empresa onde a suspeição de corrupção cresce com a conjuntura histórico-social.


Gerenciamento para o lucro e gerenciamento burocrático

Dois estilos de gerenciamento se impõem na conduta ética da sociedade: o gerenciamento para o lucro e o gerenciamento burocrático. Nos dias atuais, o gerenciamento para o lucro pressupõe um tipo de capitalismo minoritário: aquele da empresa com o mínimo de obrigações para com o aparelho governamental, além de um sistema tributário simples, direto e quase sem custos.

No gerenciamento burocrático, as coisas tomam dimensões que vão de um crescendo baseado em exigências governamentais, até a interferência direta. Todos os regimes totalitários são baseados em gerenciamentos burocráticos, e todos sem exceção são corruptos.

A razão é bastante simples: uma empresa estatal ou um órgão governamental não tem uma relação direta entre as fontes de receita e as de despesa. As receitas do governo são baseadas em leis tributárias, e as despesas não guardam proporção com as receitas, a não ser a exigência geral de que não sejam maiores do que as receitas, um preceito que a atividade política pode violar sem maiores consequências, e a criatividade fiscal fazer o resto do estrago. Quando a estatal é uma produtora, sua sustentação fica garantida pelo monopólio, a única forma de ajustar as receitas com as despesas: com esta liberdade, a corrupção pode ser uma prática constante, como de fato temos visto ao longo da história.

Assim, se a entrada não guarda uma proporção com a saída, todo tipo de injunção é possível. Em qualquer órgão de governo gasta-se baseado em critérios completamente alheios ao mercado, razão pela qual todos os amigos do estatismo, não importa a variante ideológica que assumam, encontram seu ideal de liberdade nas estatizações. Livres da exigência racional da despesa vinculada a fontes de receitas, eles podem se dedicar ao altruísmo moralista do bem-estar social, dos privilégios consentidos como autorreconhecimentos, da suntuosidade com o dinheiro alheio, da concessão em troca de apoio político, da generosidade com reivindicações sociais e trabalhistas. É o que o falecido Emil Farhat chamava ‘O Paraíso do Vira-bosta’ [T. A. Queiroz Editor, 1987].


O Sócio Oculto

A terceira categoria de organização social em que a corrupção se insere é aquela em que as exigências burocráticas ultrapassam a medida do suportável pela empresa competitiva. O estado passa de agente regulador a sócio oculto não declarado da empresa. Este é o caso brasileiro. Empresas privadas no Brasil, independentemente do fim a que se destinam, têm sempre um sócio indesejável, atrapalhado, volúvel, genioso, maléfico e usurpador. Para se precaverem contra associação tão deletéria, as empresas precisam de um grande contingente de pessoal, especialistas em direito tributário, previdenciário, trabalhista, sindical, ambiental, e por aí afora. Esquadrões de fiscais vigiam as empresas desde a colocação do alvará em lugar próprio e visível até os recibos de cartão de ponto de funcionários, as palavras proferidas pelos chefes capazes de causar danos morais, a incidência de luz solar e os possíveis efeitos ambientais da insalubridade, e centenas de pequenas coisas que não fazem parte das relações pessoais de empregados e patrões, tornadas sem efeito no arranjo social do contrato de trabalho, mas fundamento da existência do sócio invisível, da burocracia imposta com pesadas multas.

Assim sendo, se a burocracia é um conceito que explica porque uma empresa privada só pode se estabelecer consentindo em ter um sócio chamado governo, é muito natural que esta empresa privada perceba que a burocracia que lhe parasita sufocantemente pode ser a sua fonte de receitas superfaturadas e lucros extraordinários. Então uma parcela significativa do empresariado percebe que a única solução para o problema do governo como burocracia é fazer do governo o mercado. E estabelece uma relação de troca: o governo garante seu negócio e ele garante a burocracia do governo. E a sociedade passa a pagar nada menos que preços triplicados para esse arranjo institucional. São os cartórios que abundam em nossa realidade empresarial.

Nosso sistema supõe que o governo tenha toda a liberdade de criar taxas, disposições tributárias, e o que bem entender, desde que se comprometa em arrumar mercados, e os políticos não se omitam nas diligências para tal: desde os extintores de incêndio, aos seguros obrigatórios, as taxas de juro, as inspeções veiculares, as incontáveis indústrias fornecedoras do governo todas elas garantidas pela obrigação legal. E assim, se uma lei garante a própria existência do mercado, ele se chama governo, e não existe razão para a empresa não atender aos caprichos da burocracia associada.

Em tal ambiente, as empresas buscam uma compensação desempenhando o papel de fornecedoras dos órgãos públicos em uma economia em que quase 50% é consumida pelo próprio estado ou por seus agentes. Esse ambiente de promiscuidade social (promiscuidade entre um capitalismo avançado levado por uma classe de administradores profissionais e o semicapitalismo estatal, carregado por uma classe de agentes governamentais com superpoderes) forma as condições para a corrupção no mercantilismo das conveniências.

A corrupção pode ser moralmente indesejável, e de fato é, mas ela não é eticamente vencida com discursos, somente com atitudes. Fica na dependência das figuras de proa do sistema político. Com a cama pronta, se um governante honesto é eleito, ela pode ser contida em algumas iniciativas e até passar despercebida. Mas quando o próprio chefe de estado impede por decreto que o TCU investigue o destino do imposto sindical, a senha está dada, a corrupção corre frouxa como um abracadabra em que vão entrando no jogo todos os setores que sabem que a impunidade foi garantida e que tudo não passa de jogo de cena. A honestidade, nestas condições, é apenas um atributo pessoal, nunca uma exigência de decência social.

E não se enganem, uma sociedade é tanto mais refém da corrupção quanto menos lucidez possui para superar seus dilemas, quanto menor for sua capacidade intelectual de propor soluções para sua própria regeneração. Quando o problema passa a ser sistêmico, a corrupção só poderá ser saneada alterando as regras do sistema. A atual reclamação da frivolidade da oposição tem em mente esta verdade.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Adeus Pré-sal

Carlos U Pozzobon

Se na antiga Grécia os mitos tinham seu papel de explicar os eventos com aquilo que se chamava a Era da Fábula, no Brasil atual nenhuma empresa desempenha um papel tão intrinsecamente mitológico como a Petrobras.

Suas proezas, seus feitos e sucessos são celebrados aos quatro ventos como uma Odisséia. Seus funcionários são personagens que rivalizam com Ulisses. Seu mecenato na área cultural é capaz de constranger Midas, sua energia emana das façanhas de Hércules, suas conquistas nos mares capazes de humilhar Apolo e sua infraestrutura alguma coisa que coloca Prometeus na irrelevância.

Mas seria mesmo um mito do qual todos os brasileiros tiram proveito? Será que o espetacular crescimento da Petrobras a partir de 1998 não chegou a um ponto de inflexão motivado pelos próprios desdobramentos do pré-sal?

A resposta é: se alguém pensou que o pré-sal iria iniciar uma nova era de crescimento econômico, pode tirar o cavalo da chuva. Todas as grandes expectativas parecem ter convergido para um mesmo fim — o monopólio da Petrobras volta a ser gerido à custa da sociedade brasileira. O legado maldito do governo Lula foi o retorno à fase dos anos 80, em que a Petrobras utilizava a chantagem de empresa monopolista para estabelecer preços e ocultar custos. A perspectiva de um país exportador de petróleo foi totalmente frustrada neste governo. E não se sabe como será o futuro energético do país depois de tamanha frustração.


Uma perspectiva histórica

A esquizofrênica mobilização do governo contra a CPI da Petrobras em 2009, e sua subsequente ocupação dos cargos de presidência e relatoria contra o desejo da oposição, indica que a Petrobras finalmente arrumou uma boa companhia para se manter na sombra.

Na pós-ditadura, em meio ao colapso das estatais, o próprio governo não tinha tanta intimidade com a estatal queridinha dos brasileiros. Em 8/8/85, o Jornal do Brasil publicava as palavras do então ministro Francisco Dornelles, em plena instauração da Nova República: “O ministro lança um desafio à Petrobras: se a empresa diz que não pode prescindir de novos aumentos nos próximos meses, então que abra seus livros para o público e mostre sua real situação”.

Não houve a tal de abertura de livros. Nem naquela época nem em qualquer outra. Mas também nunca houve uma mobilização tão acirrada para que as sombras continuassem a cobrir a estatal consumando-se no boicote à CPI pelo próprio governo.

O problema da Petrobras é emblemático: seu presidente no período de março/85 a junho/86 ao tomar posse discursou: “a exclusividade inerente ao monopólio estatal impõe a observância, por parte de seus executores, de duas exigências fundamentais: a busca incessante de eficiência e a permanente obrigação de prestar contas”.

O presidente era então Hélio Beltrão, e um ano depois a “rejeição branca” ao seu comando era tão congelante, que o jornal O Globo ressaltava em editorial de primeira página em 3/3/86 ser esta designação prerrogativa do presidente da República (que era então José Sarney), condenando “o mero continuísmo de pessoas ou métodos” que o iniciar da Nova República queria abolir. O editorial dizia que “para se resguardem os padrões éticos que devem marcar a nova República, devem ser definidos com nitidez os legítimos interesses privados e os públicos”.

Embora sendo uma empresa pública, e portanto do governo, houve quem proclamasse que “os donos dessa estatal brasileira são os que estão lá dentro, em sua alta diretoria, fazendo apenas estratégicos revezamentos de cadeiras”. (FARHAT, Emil. O Paraíso do Vira-Bosta. T.A. Queiroz Editor, 1987, p.91)

Para os que presenciaram, aquela época era de inflação descontrolada porque havia 560 estatais majoritariamente deficitárias, e se começava a discutir sobre a privatização, que somente ocorreria na década seguinte, e que correspondeu à estabilização do país e ao progresso econômico que conhecemos.

Por essa época, o PT era um partido pobre e altruístico, mas o país era um caos. Uma Comissão de Avaliação das Remunerações Indiretas, criada pelo Ministério da Administração, descobriu que somente em Brasília havia “199 casas ocupadas por diretores de empresas, sendo 107 de propriedade dessas empresas e 62 alugadas por elas para eles. Além disso, 100 empresas pagavam despesas de luz para seus dirigentes, 97 assumiam as contas de água (piscinas) e 67 pagavam gás”. (JB, 2/5/85, p.5, em EF, p. 93).

Certamente nenhum membro do Partido dos Trabalhadores ocupava essas residências, e certamente também estavam todos no coro dos que propunham a supressão dessas mordomias. Vinte anos depois, a coisa mudou completamente. Agora não só estão entre os mordomos, mas pela primeira vez na história “deste país” na beligerância para que nada seja revelado, nem da Petrobras, nem de qualquer outra empresa pública.

Antigamente, quando surgia um faz-de-conta, um deixa-pra-lá, uma recusa em prestar informações de algum ente público quando se clamava por investigação, se dizia que provavelmente havia uma maracutaia das grandes. Era a época em que os escândalos tinham um caráter grupesco — porque internalizados nas oligarquias —, não partidário. Agora, o abafamento se tornou o que o marxismo costuma chamar de “a linha política do partido”.

No episódio do mensalão, não foram poucos os órgãos de imprensa que ao se deterem na questão vaticinaram que o grande erro do PT consistiu em confundir o Estado com o Partido. Acho que a história está demonstrando que estavam enganados: a própria natureza ideológica do Partido é confundir-se com o Estado.

Como explicar que a Petrobras tenha financiado instituições amigas do PT com cifras astronômicas, como a Petrobras Fome Zero, que desembolsou R$387,5 milhões entre 2003 e 2006, ou como o Programa Petrobras Desenvolvimento e Cidadania, que desembolsou mais R$300 milhões entre nov/2007 e dez/2008? Estadão 24/05/09, p. A4

Só uma entidade sindical, o IFAS (Instituto Nacional de Formação e Assessoria Sindical da Agricultura Familiar), que já era conhecido do noticiário pelo desvio de verbas do INCRA, recebeu da Petrobras 1,6 milhão para a formação de mão-de-obra. O objetivo do IFAS era treinar 3 mil famílias de trabalhadores rurais no plantio de sementes para utilização em biodiesel com um contrato total de R$ 4 milhões. Previa não só assistência técnica como até a construção de armazéns de pequeno porte para armazenagem de grãos. O projeto ficou no papel e o dinheiro sumiu, ou melhor, deve ter sido usado para dar o abraço no prédio da matriz da empresa no Rio de Janeiro por sindicalistas quando se mobilizaram para impedir a CPI. Esses abraços bem que mereciam a pena de algum satirista que pudesse calcular o quanto custam individualmente ao país.

O lado curioso é que para ser um fornecedor da Petrobras é preciso uma montanha de certidões e atestados de órgãos públicos, de associações profissionais e por aí afora. Mas para receber um auxílio, a coisa afrouxa. O IFAS não foi questionado sobre sua conduta no caso do INCRA. Embora a Petrobras tenha entrado na justiça requerendo a devolução do dinheiro pago ao IFAS, e o próprio Ministério Público esteja processando a entidade, não se conhece nenhum caso de desenlace deste tipo que efetivamente recupere o dinheiro gasto.

O que está por trás da Petrobras — que a todos os petroleiros compõe uma história de sucesso, quando não de heroísmo ao estilo stalinista — é também uma história de cruz-credo, de Cosa Nostra. Considere a taxa de 30% de periculosidade estendida a todos os funcionários da empresa, quando sua função original era proteger somente os trabalhadores das plataformas, das refinarias e das áreas de alto risco no manuseio e transporte de combustíveis. Este é o espírito da legislação trabalhista.

Não foi o entendimento dos órgãos encarregados de zelar pelas empresas estatais. Por uma engenhosa construção retórica, os funcionários que transitavam de escritórios para refinarias também tinham direito à taxa de periculosidade, pois ainda que ficassem apenas alguns minutos, corriam o risco que para os outros era de expediente inteiro. Em vista disso, e alegando o princípio da isonomia, todos passaram a incorporar o benefício. Isto ocorreu no início dos anos 80. Não se ventilou argumentar juridicamente de que se existe o princípio da isonomia, não pode existir o da periculosidade, e se existe este, não pode existir aquele.

Na época de João Goulart, houve um presidente que transformou a Petrobras em cabide de empregos: em onze meses conseguiu criar 10 mil novos empregos. De lá para cá o cabide foi aumentando às pencas.


O desperdício de gás

Nos anos 80, por uma decisão de pesquisar petróleo na selva amazônica, a Petrobras descobriu o campo de Urucu. Era um campo de gás numa região fertilíssima. Parecia uma solução capaz de mudar o perfil energético do país, não fosse o campo ficar no meio da selva (e o dobro de distância da Bolívia a São Paulo). Necessitando de um gasoduto para transportar o produto até um porto de embarque com calado suficiente, o gás descoberto ficou queimando na chaminé por mais de 20 anos, sem que ninguém se preocupasse muito com isso. Paradoxalmente, em um estado (o Amazonas) cuja matriz energética era toda baseada em queima de óleo industrial, o mais poluente. Novamente o mito supera a realidade. Se o gás queimado fosse exportado, e gerado receitas, não haveria poucas vozes protestando contra “o roubo de nossas riquezas”. Como era queimado, tudo ficou confinado a uma enorme chaminé ardendo dia e noite no meio da selva. Até que Evo Morales, com sua política de invasões à propriedade alheia, obrigou a Petrobras a utilizar as reservas desperdiçadas de gás.

Aqui o argumento de falta de licença ambiental voou pelos ares e o gasoduto foi contratado e implementado rapidamente. Neste caso, 2 contratos de R$ 1 bilhão cada foram aditivados em R$ 612 milhões de reais.OESP, 28/05/09 Aliás, os aditivos são objeto de condenação pelo TCU e se revelam tão constantes que parecem ser uma política da empresa: há casos de aumentos de até 2000%, conforme revelou o Estadão em 28/5/09. O TCU encontrou irregularidades em contratos em todo o país.

O costume de queimar gás não é exclusivo de Urucu. A imprensa noticiava em 27/4/09 Vide-versus que “a freada na economia causou, em fevereiro, desperdício de 8,1 milhões de metros cúbicos de gás por dia, queimados nas plataformas marítimas da Petrobras, sobretudo na bacia de Campos. O volume corresponde a pouco menos do consumo do Estado do Rio de Janeiro, o segundo maior consumidor do País. Em valores, a perda em fevereiro atingiu R$ 5 milhões ao dia, com base no preço de R$ 0,62 por metro cúbico.

O desperdício ocorre porque a Petrobras produz a maior parte do gás associada à extração de petróleo. Se fechar os poços, a empresa interrompe também a produção de óleo, mais rentável. A saída é queimar o gás na plataforma ou usá-lo em suas próprias operações. Na média dos dois primeiros meses deste ano, a queima de gás cresceu 29% e chegou a 7,1 milhões de metros cúbicos, segundo relatório do Ministério de Minas e Energia.“

Que importância tem 5 milhões por dia para uma empresa que não precisa competir no mercado brasileiro, que já é cativo, e que caminha na direção de apossar-se de todos os recursos energéticos do país?

Tecnicamente se sabe que todo o poço de petróleo gera gás, mas nem todo o gás pode ser aproveitado. Isto porque são precisos ou tubulação específica ou recursos de liquefação e transporte. Quando o gás é gerado em pequena quantidade relativamente ao petróleo extraído, ele é queimado. Mas quando o país importa da Bolívia seria natural que o gás fosse aproveitado em sua máxima extensão. Até porque ele poderia estar contribuindo para a redução do preço e favorecendo os consumidores. Mas com um oligopólio não existe oferta e procura. Logo, o gás é queimado e o preço não baixa no botijão. E onde estão os políticos que deveriam zelar pelo interesse da população? Provavelmente na fila dos patrocínios da estatal. O Jornal do Comércio de 11/08/2009 informava que:

“o Brasil registra em 2009 a maior sobra de gás natural de toda sua história. No total, deixaram de chegar ao mercado 20,4 milhões de metros cúbicos por dia, em média, volume equivalente ao importado da Bolívia. A quantidade de gás “desperdiçado” é maior do que a consumida por toda a indústria de São Paulo. Juntas, por exemplo, as regiões Sul e Sudeste utilizam 25 milhões de metros cúbicos desse combustível.“

“A gigantesca sobra diária é dividida em duas vertentes: 8,72 milhões de metros cúbicos são simplesmente queimados na atmosfera a cada dia. Dessa forma some o gás retirado dos poços produtores que não tem como ser transportado para centros de consumo. Outros 11,7 milhões de metros cúbicos tiveram de ser reinjetados nos campos, seja por demanda insuficiente ou falta de infra-estrutura para transporte.”

“Os dados constam do último relatório do Ministério de Minas e Energia, referente ao mês de maio. A estimativa de especialistas é de que o boletim de junho revele sobra ainda maior. De acordo com a Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás), foram vendidos 40,6 milhões de metros cúbicos por dia em junho, ante os 41,5 milhões de maio, ou seja, houve queda de 2,16% na comparação mensal.”

“Em relação a junho de 2008, o consumo de gás natural registrou recuo ainda maior: 19,35%. Segundo os dados da Abegás, o consumo acumulado no primeiro semestre do ano caiu 27,82%, ante o período do ano passado. Relatório da associação avalia que “mais uma vez os dados demonstram que a falta de uma política energética e o alto preço do insumo têm refletido de forma negativa no consumo”.

“A sobreoferta jogou para o nível mínimo a média de gás natural importado da Bolívia, que ficou em 21 milhões de metros cúbicos por dia nos seis primeiros meses do ano. O contrato entre os dois países prevê que o limite mínimo de importação pode chegar a 19 milhões de metros cúbicos num dia, contanto que o Brasil compense nos demais dias do mês, fazendo com que a média diária se mantenha nos 21 milhões de metros cúbicos.”

“Caso esta compensação não ocorra, o contrato, do tipo “take or pay” prevê que o Brasil pague, ao final de um ano, pelo mínimo previsto, mesmo sem consumir. “Não era possível prever um cenário como este”, diz o presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Maurício Tolmasquim, admitindo que a sobreoferta de energia vai perdurar até 2015. Para ele, a Petrobras fica como refém deste mercado, porque precisa dar garantias plenas de fornecimento quando as usinas tiverem de ser acionadas. “Ela não pode sequer fechar contratos flexíveis para esta energia quando os reservatórios estão cheios.”

“Tolmasquim já defende a adoção de medidas para elevar o consumo no Brasil. Mas, com as recentes descobertas de novos reservatórios e a entrada em produção de campos de grande porte, como Mexilhão, na Bacia de Santos, que começará a produzir em 2010 e terá capacidade de até 15 milhões de metros cúbicos por dia, a tendência é de elevação da oferta.”

Isto é: os acordos com a Bolívia estão se gaseificando. No horizonte de produção, teremos gás sobrando na próxima década. Onde estão portanto as propostas estratégicas? O que estão pensando os técnicos do ponto de vista da sociedade e não da Petrobras? Parece que não existe governo ou todo o mundo neste governo confunde o povo brasileiro com a própria estatal. E esta, transformada em objeto mercantil, sabe que o mercado é o governo e o resto que continue como tal desde que seu monopólio se mantenha garantido pelo governo ao qual irriga com suas verbas. Imagine o leitor se este gás sobrando pudesse ser canalizado para a indústria cerâmica nacional a preços chineses. Ora, esta próspera indústria seria turbinada com tal intensidade que certamente teria condições de competir até com a China nos mercados mundiais. E o que se fala sobre isso? Absolutamente nada. A Petrobras prefere queimar o gás a baixar o preço para incentivar seu consumo. E isso representa no mínimo um crime contra o consumidor brasileiro.


Os petroleiros

Depois dos protestos em frente ao Ministério de Minas e Energia em dezembro de 2008, os petroleiros ameaçaram uma greve para conseguir adiar a 10ª rodada de licitações de blocos para exploração de petróleo e gás. O motivo? A região da bacia de Santos (que vai até Santa Catarina) tem se mostrado um mar de petróleo. Como quase não houve perfuração frustrada até o presente momento (o índice de petróleo descoberto é altíssimo quando comparado com outras regiões do mundo), as fantásticas perspectivas permitem a possibilidade do Brasil se tornar um grande exportador de Petróleo, do porte de uma Venezuela nos bons tempos (antes de Hugo Chávez, em cujo governo a exploração já caiu pela metade), se naturalmente houvesse inteligência estratégica no país, coisa que não existe absolutamente, a menos do perfil oligopolístico de deixar todo o pré-sal nas mãos da Petrobras e não nos braços da Nação brasileira. Se o governo pensasse em termos de royalties de todas as empresas exploradoras — e não em favorecer a sua queridinha Petrobras —, o Brasil poderia mudar seu perfil econômico. Como? Veja meu artigo “Maus presságios para o pré-sal” neste blog. A intenção dos petroleiros é mudar o marco regulatório. Isto quer dizer nacionalizar o pré-sal, que é a mesma coisa que entregar todo o ouro negro para a Petrobras. Não faltam vozes regressistas neste assunto. Os petroleiros acham que o petróleo do pré-sal deve ser poupado para o futuro ou no mínimo ser usado com muita parcimônia no presente. Resumo: continuamos a ser o país do futuro.

A principal força do mito é se apoderar da Nação. E a Nação devolver na mesma moeda por inoculação sistemática do mito: a reestatização completa da Petrobras, a exploração exclusiva como monopólio público e por aí afora...

Para isso mudaram o marco regulatório. Em vez da transparência do modelo de concessão, impuseram o modelo de partilha. Primeiro os descontos dos custos. E só depois a repartição. Com a reputação de superfaturamento, parece que o Congresso está todo já na lista do suborno, pois aprovar uma proposta dessas é quase uma confissão de neomensalão.

O mais curioso na mentalidade dos petroleiros é a associação da noção de escassez com a de monopolização. Para os petroleiros, o petróleo brasileiro vai acabar em 20 anos: eles vêm falando isso desde a crise do petróleo de 1973. Em 20 de novembro de 2006, a imprensa noticiava Videversus 29/11/2006 que "o presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras (AEPT) avaliou nesta segunda-feira, que permitir a exportação do petróleo brasileiro é "um crime contra a soberania, contra a existência do Brasil como país soberano". Ao participar de um dos painéis da Conferência Internacional dos Biocombustíveis, em Brasília, ele lembrou que as reservas brasileiras de petróleo somam 14 bilhões de barris e que as estimativas indicam que o volume pode chegar a 20 bilhões de barris. Disse ele, "Nesse ritmo, em menos de 20 anos o petróleo brasileiro vai acabar. Em cerca de 10 anos, se o Brasil não crescer, a curva de produção vai passar para o ponto máximo e o País voltará a ser importador'. Para ele, ao permitir a exportação de petróleo, o governo brasileiro 'abre mão de um bem vastíssimo' e terá que importar o barril por preços superiores a US$ 100,00."

As perfurações a partir de 2006 começaram a indicar a presença cada vez maior de depósitos de hidrocarbonetos na bacia de Santos. Um único reservatório (Tupi) indicava uma estimativa de 8 bilhões de barris. O entusiasmo tomou conta do país. Em pouco tempo vinham notícias dos próprios petroleiros indicando que as reservas estariam calculadas entre 80 a 200 bilhões de barris. O Brasil podia ser imaginado como uma potência petrolífera. Mas para que isso fosse verdade, o Brasil deveria se desenhar como uma potência voltada para a captação de royalties e participação de todas as grandes empresas mundiais, incluindo os chineses, indianos e russos.

Então entra em ação as forças do estatismo capitaneadas por Dilma Rousseff e se interrompem as licitações, modifica-se o marco regulatório de concessões, e o Congresso é chamado a referendar mais uma rasteira contra o desenvolvimento nacional.


Crime e Recompensa

Em 13 de julho de 2009 a imprensa (Vide-versus) informava que a Justiça do RJ havia mandado prender 20 acusados de desviar R$4 milhões em materiais (principalmente dutos) da Refinaria de Duque de Caxias. 17 pessoas já estavam presas e a promotoria informou que os criminosos haviam formado uma quadrilha que segundo o delegado Luiz Lima Ramos “vinha atuando desde o final de 2007 na refinaria, com a média de um furto por semana, mas os registros só eram feitos internamente na empresa e não chegavam à delegacia de polícia. Com a mudança da estrutura de segurança da Reduc, os responsáveis que assumiram trouxeram para nós três registros de furtos de materiais. Os criminosos chegavam a carregar 15 toneladas de material em caminhões de uma só vez". O delegado disse que entre os materiais furtados estavam tubos de aço e válvulas. Em sua opinião, os suspeitos repassavam os materiais para outras empresas. Segundo a Promotoria, além da Petrobras, foram lesadas também a IESA e a Queiroz Galvão. E estimam que os furtos atinjam um valor superior a R$10 milhões.

Está mais do que óbvio que este tipo de crime só pode ocorrer com a participação de empregados e com a complacência das gerências. Mas nem isso nem qualquer outra maracutaia abalou a reputação da empresa que 6 meses depois anunciava em seu site ter ganho o prêmio de Empresa Melhor Gerenciada da América Latina concedido pela revista Euromoney de Londres. E não ficou só nisso. A Euromoney reconheceu a Petrobras como a melhor nas categorias Website Mais Útil e Informativo.

Os ingleses – como se sabe – são aquele povo que concedeu ao presidente Lula o Prêmio Chatham House por sua contribuição para as relações internacionais em novembro de 2009, pouco antes do episódio dos presos de consciência em Cuba e da visita ao Irã e dos abraços a Ahmadinejad.

Não pense que as irregularidades se restringem ao núcleo operacional das refinarias. Um dos principais fatos que mobilizaram o PSDB para a convocação da CPI foi exatamente a denúncia da existência de uma ONG chamada Movimento Brasil Competitivo (MBC) que havia recebido 16 milhões desde 2003 com a finalidade de “apoiar a coordenação e a execução do Programa de Modernização da Gestão Pública e Privada em vários estados brasileiros". A transação teria sido feita sem licitação. Por acaso, o conselho da ONG tinha a participação do presidente da Petrobras e da ministra Dilma Roussef. Esta é uma denúncia que viraria um escândalo não fosse a CPI bombardeada com chumbo grosso pelo governo.

O OESP noticiava em 7/10/09 que “deflagrada em julho de 2007, a operação Águas Profundas da Polícia Federal culminou no indiciamento de 26 pessoas (sendo 5 funcionários da Petrobras) e resultou em ação penal que está em curso na Justiça Federal do Rio de Janeiro. No entanto, ainda em 2007, uma das empresas investigadas - Estaleiro Mauá S/A (ex-Mauá-Jurong) - firmou quatro contratos para reparo de embarcações com a Transpetro S/A, subsidiária da Petrobras, que somam R$ 660 milhões.”

O grande gerenciamento da Petrobras a que se refere a revista Euromoney consistiu no seguinte: através de 10 liminares, a Petrobras conseguiu no Supremo a permissão para fazer contratos sem licitação, alegando para isso o direito de fazer procedimentos simplificados para comprar e contratar. Até aí tudo bem. Ocorre que o reclamante era nada menos que o Tribunal de Contas da União que havia detectado irregularidades em obras avaliadas em R$11 bilhões em todo o país. Conforme o informativo eletrônico Vide-versus de 21 de setembro de 2009 “Petrobras e Tribunal de Contas da União travam uma guerra há anos sobre a forma de contratar. O Tribunal de Contas da União diz que a empresa precisa se submeter à Lei de Licitações, mas a Petrobras evoca um decreto presidencial para ter mais liberdade. Ao analisar as razões que levaram a sucessivos adiamentos do gasoduto avaliado em R$ 2,5 bilhões, os técnicos do Tribunal de Contas da União encontraram diferenças de preços de até 57.782% entre as estimativas da Petrobras e as propostas das licitantes. Mesmo o TCU tendo detectado irregularidades em contratos que somam R$ 4,5 bilhões, a Petrobras não precisou parar 94 empreendimentos em todo País relacionados à manutenção, transporte, suprimento, planejamento e gestão da qualidade para exploração e produção de petróleo. Os técnicos identificaram contratos sem assinatura e alteração do objeto sem nova licitação.”

E, sob o argumento de que seria um desastre paralisar as obras, pois acarretaria desemprego, o presidente Lula vetou as ordens do TCU sem que a oposição protestasse contra o fato. Como se uma força misteriosa não pudesse refazer os contratos, como se a autoridade da Petrobras inexistisse por completo, todo o superfaturamento continuou lépido e faceiro e ainda contando com a presidencial presença palanqueira em inauguração de canteiros de obras, lançamento de pedras fundamentais e quetais.

A Petrobras petista descobriu o paraíso terrestre consubstanciado no velho ditado getulista: “para os amigos tudo, para os inimigos a lei”. Isto quer dizer o seguinte: para os amigos, dispensa de licitação, carta convite e similares. Para as empresas desconhecidas, a avalanche burocrática.

Outro caso foi o apontado por Marinus Marsico, procurador do Tribunal de Contas da União, que disse que iria fazer uma representação contra a manobra tributária da Petrobras. "Há 14 anos no tribunal eu nunca vi uma manobra desse tipo, isso me gera uma certa suspeita”, disse ele. “Marsico falou ao sair de audiência pública na Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados. No início desta semana, o presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli, negou que a empresa tenha usado qualquer tipo de artifício ou manobra contábil para pagar menos imposto. A empresa teria modificado, no último trimestre do ano passado, a forma de recolher os tributos sobre ganhos de variação cambial e a Receita Federal apura se isso poderia ser feito durante o exercício. Essa mudança teria gerado um crédito tributário de R$ 4 bilhões para a estatal que foi compensado em outros tributos, como a Cide (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico), cobrada sobre os combustíveis” (Vide-versus 15 de maio de 2009).

Este episódio foi referendado pela Receita Federal e foi responsável pela expulsão de Lina Vieira da Secretaria junto com a acusação do pedido de suspensão das investigações sobre fraudes praticadas por integrantes do clã Sarney. Na época Lina Vieira foi ao Senado falar do encontro que teve com Dilma Roussef que teria sido porta-voz do pedido, porém esta negou por completo e Lina Vieira terminou sendo exonerada da função.

Outra denúncia ocorreu na área cultural. Todo mundo sabe que o papel da Petrobras é extremamente importante no mecenato da cultura brasileira. Talvez seja a empresa que mais patrocina eventos culturais no Brasil. Poderia fazer isso seriamente. Mas não quando espelhada por um governo fraco e uma diretoria que é o reflexo do governo. Conforme apurou a imprensa, 03 de agosto de 2009 - Vide-versus foi descoberto que “a Petrobras gastou mais de R$ 12,4 milhões na sua área de abastecimento com empresas que vendem notas fiscais, que têm como endereço um canil ou um barraco em uma favela, levantou a ponta de um esquema muito maior: grande parte da produção cultural do Rio de Janeiro vive em um ambiente de sonegação sistemática de impostos e operando através das mesmas empresas. Artistas, autores, produtores e fornecedores de todos os tipos usam o esquema de notas fiscais "de favor", obtidas destas empresas, em vez de operar como pessoa física autônoma ou abrir sua própria empresa. Assim, driblam a Receita Federal, pagando menos imposto ou simplesmente sonegando. Levantamento feito pelo jornal O Globo indica a existência de pelo menos 13 empresas fornecedoras dessas notas fiscais. As mesmas firmas também já aprovaram quase R$ 14 milhões no Ministério da Cultura em projetos enquadrados na Lei Rouanet.”


O padrão do Alaska

Em um ano de eleições presidenciais (2010), era de se esperar que os candidatos apresentassem propostas mais além do exercício banal de distribuir dinheiro a rodo para os subordinados políticos sob o título funcional de “governadores e prefeitos”. Por que os royalties vão ser destinados para estados e municípios? Como tenho repetido tantas vezes, a melhor forma de jogar dinheiro fora – obviamente com o atual sistema político – consiste em distribuí-lo para estados e municípios. Será que vai aparecer um candidato com a ousadia de dizer que poderá dobrar a renda da população apenas distribuindo os royalties diretamente para ela, em vez de desperdiçar no aparelhamento de cabos eleitorais senão na corrupção pura e simples?

Será que alguém poderá quebrar essa corrente de desperdício propondo a solução do Alaska? Pois naquele território os políticos decidiram que os royalties do petróleo seriam constituídos em fundo, chamado de Fundo Permanente do Alaska, e das aplicações financeiras e rendas imobiliárias os benefícios seriam distribuídos igualmente para a população, não importando a idade ou o tamanho das famílias. Isto ocorreu logo após a descoberta do petróleo em 1976, e 6 anos depois, a primeira distribuição foi feita no valor de U$1000,00 para cada cidadão ou residente com mais de um ano. Em 2003 o cheque do governo foi de U$1107,00 para um total de U$682 milhões já que a população do Alaska é cerca de 600 mil pessoas. Um país que já soube distribuir fundos (157) e benefícios sociais como o Brasil, por que não incluir os royalties diretos para a população? Será que não existe um só candidato disposto a faturar alto nas eleições como um pouquinho de ousadia?

E o padrão da China

Ou então, por que não investir à moda chinesa em nossa infraestrutura sucateada com os royalties do petróleo? Considerando uma média de 40 dólares por barril do pré-sal (se não houvesse o conto das dificuldades e altos custos já inoculado pela Petrobras nos políticos brasileiros), poderíamos imaginar que:

  • O famoso trem de alta velocidade SP-Rio com custos astronômicos de U$17 bilhões poderia ser construído com a bagatela de 425 milhões de barris. Parece muito? Mas em um horizonte de 4 anos (tempo que levaria para construir a ferrovia) representam apenas 291 mil barris por dia. Vamos arredondar para 300 mil.
  • Ou quem sabe outros U$17 bilhões para reconstruir as ferrovias de carga do RS até o Rio e BH? Mais 300 mil barris por dia em 4 anos.
  • Podemos imaginar a recuperação dos portos com U$5 bilhões? Então em 4 anos conseguimos com a exportação de aproximadamente 100 mil barris.

Total até agora: cerca de 700 mil barris dia. Mas isso é exatamente o que a Petrobras exportou em março de 2010. Fonte: Agência Petrobras de 06/04/2010 10:28 Release: TN Petróleo: “A Petrobras atingiu, em março, o recorde de exportação de 733 mil barris por dia de petróleo, totalizando 22,73 milhões de barris no mês. Esse resultado superou a marca anterior, de dezembro de 2008 , em 113 mil barris.”

Então o que está acontecendo no país? Já estamos recebendo para fazer uma transformação à chinesa em nossa economia, mas onde está indo este dinheiro? A resposta é muito simples: para estados e municípios.....

Mas com um pré-sal seguindo o ritmo que deveria, isto é, leilões de áreas para todas as empresas de exploração não importando quem, com o objetivo de exportação (já que a Petrobras atende o mercado interno), o Brasil poderia lentamente ir aumentando sua presença e transformar-se em poucos anos em uma potência petrolífera exportadora.

Observe que com toda a mobilização em torno de energias alternativas o crescimento de consumo mundial de petróleo de 2008 para 2009 foi superior a 1 milhão de barris/dia, portanto, existe lugar para mais uma potência petrolífera. E um horizonte de 3 a 5 milhões de barris dia não estaria descartado para um país cujo sistema político tivesse um mínimo de inteligência. Mas não há sensibilidade para pensar o país do ponto de vista estratégico. O sistema é dimensionado de forma tal que quase tudo se desperdiça na máquina de moer consciências do oportunismo político. Em um estado cuja forma de atuação é o próprio suborno dos cidadãos com passagens aéreas, viagens, regalias, mordomias, sinecuras, aditivos, direitos adquiridos, etc, não sobram neurônios para qualquer proposta mais elevada. O pré-sal, monopolizado pela Petrobras como o modelito de partilha, será a constitucionalização de uma fraude contra todos os brasileiros, mas naturalmente enriquecedor da minoria que escabuja como sevandijos aos pés da estatal que é o orgulho e mito dos brasileiros.