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domingo, 30 de outubro de 2022

O pesadelo eleitoral de 22

Carlos U Pozzobon

Se não me engano, foi Tavares Bastos que no século XIX disse que a política brasileira as vezes se parece com uma galeria de estátuas mutiladas. O que se viu este ano não tem precedentes na história da República. A começar com um candidato muito seguro da vitória pela exposição na mídia, com um histórico de cabriolas insultantes tanto a Lula como a Bolsonaro. Me refiro a Marco Antonio Villa, o professor de história mais próximo do surto verborrágico outrora tão valorizado nas tribunas. No passado, se elegeria senador. No presente, não foi eleito. Cito Villa porque percebi que o eleitorado rejeitou todos os candidatos com algum verniz intelectual. E não só na oposição: no Bolsonarismo também. Roberto Motta, engenheiro de formação e especializado em segurança pública, defensor de Bolsonaro no Rio, não se elegeu também. Estava deslocado da métrica obtusa que coleta votos.

José Serra, ex-tudo, não conseguiu o mandato downgrade de deputado federal. O PSDB percorreu a sina do suicídio político a partir de 2014, especialmente com a chegada de Dória, que dando uma rasteira em Andrea Matarazzo, o candidato natural a prefeito em 2016, deixou-o tão humilhado pela falta de apoio da direção do partido que caiu fora amargurado. Dória teve uma ascensão meteórica e acabou sendo traído pela ambição desmedida. Jogou fora a reeleição certa em Sampa, mobilizou o baixo clero do Partido, conquistou a vaga de presidenciável e, por fim, foi traído pela conspiração da gerontocracia que mais uma vez se curvou ao PT, e saiu de cena de mansinho, deixando o PSDB na irrelevância de seu reboquismo. Joyce Hasselman, rompida com o bolsonarismo, migrou para o PSDB mal sabendo que estava entrando em uma casa arrombada: foi descartada.

Simone Tebet protagonizou, juntamente com Ciro Gomes, os maiores fiascos eleitorais. No segundo mandato como senadora, prestes a ser mandada para casa como ocorreu em 2018 com Ana Amélia no RS, Simone esqueceu o que disse de Lula e do PT no primeiro turno e se transformou em cabo eleitoral dele, algo que demonstra que pessoas inteligentes não estão isentas de cometer burrice política, como advertiu Jean-François Revel. Acredita em ganhar um ministério. Mas tudo indica que vai ser uma embriagues passageira que ao fim, ou entra para o PT e pede para que “esqueçam o que eu disse”, ou sai do governo envergonhada como Joyce Hasselman.

As eleições destravaram muitas coisas que não estavam no modo de pensar da ciência política do país. Pazuello foi o segundo deputado com mais votos no Rio de Janeiro sem nunca ter sido político, e com uma exposição midiática tão negativa que qualquer racionalista político diria que não teria votos. Quem elegeu Pazuello? Os evangélicos? Duvido. Eles tem seus próprios pastores candidatos. A resposta deve estar na família militar, numerosa no Rio e uma das mais ativas presenças do bolsonarismo das redes sociais. Antigamente militares eram proibidos de votar. A lógica era de que uma instituição alicerçada na disciplina não poderia sequer mencionar preferências políticas. O populismo se encarregou de liquidar com a lógica.

O terceiro caso de derrota em que os derrotados não conseguiram entender o que se passou ocorreu com o partido Novo. De 12 deputados se reduziu a 3. Felipe D’Ávila teve menos de 600 mil votos. O que aconteceu?

Uma sociedade que vive para o espetáculo, que tem um povo atrelado à cultura do entretenimento, adestrado para o hedonismo como compensação para a vilificação que lhe é imposta na mais desavergonhada descompostura ética pós-petrolão, pode ser sensível a apelos morais?

Muito pouco. Só em alguns nichos se encontra a disposição para conferir dignidade a princípios e prudência em escolhas. O resto foi tudo dominado. E esta dominação é exatamente esta: a política passou a ser um puxadinho da corrupção legalizada no orçamento secreto e financiamento partidário, os dois venenos que danaram a política brasileira sem remissão. Ninguém está preocupado com a moralidade pública quando ela se mostra um obstáculo ao próprio futuro político do candidato. A derrota do Novo confirma que o estoicismo administrativo não produz resultados em uma população niilista.

Os dois grandes polos vitoriosos de um Brasil sem nenhum futuro constituem o petismo e o bolsonarismo. O petismo através da clerezia acadêmica, os sindicatos e organizações sociais de bairros, os índios de fantasia, os quilombolas de batuque e supostos sem-terra, na verdade garimpeiros da propriedade alheia, as ONGs, a parte do funcionalismo gazeteiro, todos escoltados pela tradição intelectual anti-americanista e anti-capitalista latino-americana.

O bolsonarismo ficará enraizado em certas elites do funcionalismo amedrontadas com o bolivarianismo, os evangélicos sempre atentos ao tilintar das moedas que vem com Deus Acima de Tudo, o conservadorismo de rosário e incenso, o estatismo militar, espécie de socialismo no armário que recusando as privatizações não se constrange em vestir a máscara de liberal, incapaz de esboçar uma estratégia de desenvolvimento que não seja a simples ocupação do poder, onde o verde-amarelismo que cerca o presidente demonstrou em 4 anos que não passava de uma elite de aproveitadores, espelhando o petismo e complementando-o no “deixa estar para ver como é que fica”.

Foram estas duas grandes maiorias que se apossaram das redes sociais e se consolidaram nas eleições. Não houve discussão dos problemas nacionais. A preocupação dos candidatos era com o adversário e não com o Brasil. Tudo se passou como se o país estivesse pronto, como as sociais democracias europeias, e restasse apenas questiúnculas secundárias. Em lugar de discutir a cozinha, nossos candidatos se limitaram a falar em como arrumar a mesa do banquete. O angu que vai ser servido é o mesmo de sempre.

Um país que tem 96% do orçamento empenhado em despesas permanentes pode se sentir protegido contra os abutres das verbas públicas se não fosse o caso dos estragos de nosso sistema político ultrapassarem a casa dos 4% restantes. Porque nos 96% estão os abusos, os contratos dos laranjas, as mordomias e privilégios de nossa segregação social organizada que as eleições foram capazes de mostrar que são não apenas intocáveis, como principalmente, intratáveis e inquestionáveis por aqueles que tinham obrigação de se manifestar sobre isso. Não se fala em reformas, não se fala em mudanças, não se fala em desenvolvimento. Tudo o que se pretende e pratica é ocupar o poder e depois distribuí-lo entre os camaradas de jornada.


quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Moro na mira

Carlos U Pozzobon

O manifesto divulgado anteontem de empresários, artistas e intelectuais em apoio a Lula tem um significado que transcende o fator Bolsonaro, embora seja usado para esconder as reais intenções do grupo. O manifesto começa assim:
“Mais do que eleger um presidente, em 2022 o Brasil fará plebiscito entre continuar o desastre ou retomar a estabilidade democrática-institucional, o fim do negacionismo, a volta da empatia social e a retomada de um desenvolvimento sustentável. Não há razão que justifique adiar para o segundo turno, correr o risco das incertezas decorrentes de disputas secundárias, e principalmente os riscos de atos fora da Constituição. Por isso, apelamos a todos os democratas, os candidatos e seus eleitores, para que nos unamos no primeiro turno a Luiz Inácio Lula da Silva.”

A afirmação de que “não há razão que justifique adiar para o segundo turno” a disputa eleitoral só pode ser uma tolice. Como o intervalo entre o primeiro e o segundo turno poderá causar “riscos de atos fora da Constituição”, se estes atos ocorrem cotidianamente? A violação diária da Constituição tem se tornado tão banal que evidentemente o texto sugere que se criaria um estado de anarquia. Neste caso, se trata de um erro crasso. Em todo o mundo a anarquia sucede as eleições e não as precede.

Mas será que estes empresários, políticos e intelectuais esqueceram dos black blocs quebrando tudo o que encontravam pela frente? Será que esqueceram as invasões de terra ao arbítrio de bandidos ligados ao PT? De ocupação de escolas e universidades?


A pista para saber o que está acontecendo nos bastidores foi dada por Aloysio Nunes Ferreira, um dos artífices da articulação da candidatura “Lula em Primeiro Turno”. E a razão cristalina não poderia ser outra: a ameaça não é Bolsonaro, usado como bode expiatório, mas Sérgio Moro, o homem que segundo Aloysio “é um juiz de primeira instância que teve alguma conduta na justiça altamente contestada não só com teor das sentenças que proferiu, mas também em razão do fato de ter se aproveitado do poder judiciário, em aliança com uma facção do Ministério Público, para fazer política e galgar postos de poder político. Fora isso, não tem mais nada que o credencie para ser presidente da República do Brasil. O que ele tem? O fato de ser juiz? [...] Porque ele se distingue? Porque realmente conseguiu um grande apoio da mídia e soube cultivar, aproveitar e fazer crescer, mas que agora vai se desvanecendo”.

Ou seja, as sentenças de Moro “altamente contestadas” são mais nocivas ao país que a governança do PT. Comprova que realmente o PSDB, através de Alckmin e Aloysio, se transformou num puxadinho do PT e o maior temor é a figura apolínea de Sérgio Moro, um homem que pretende restabelecer a dignidade que o Brasil viveu no período da Lava Jato — um curto período que haverá de ficar na história do Brasil como um momento em que a corrupção foi confrontada e condenada pela avalanche das ruas e a integridade de um setor do judiciário — e que a canalhocracia política se une para acabar de todas as formas, começando com a perseguição do TCU e agora a aliança com Lula, este homem que o manifesto afirma ser a personificação da “volta da empatia”.

O leitor não precisa ser um especialista em Brasil para entender que a corrupção generalizada funciona como um consórcio para que tudo seja abafado com toneladas de salamaleques, homenagens recíprocas, distribuições de honrarias, banquetes e celebrações de aniversários, títulos honoris causa emanados do entusiasmo desmedido que causa uma mala de dinheiro ou conta bancária em paraíso fiscal, garantida sempre por aqueles princípios recorrentes das autoridades judiciárias de que “ninguém pode ser condenado sem o devido processo legal”, que nunca se sabe quando vai aparecer, a menos daqueles que por acaso caíram nas mãos de Moro que teve a audácia de não se fazer de dissimulado.

Realmente, o manifesto seria preocupante, se não fosse a singular situação em que nos encontramos, com os partidos políticos em estado tal de decomposição que sequer são necessários para eleger um presidente. Isto não diminui as dificuldades de Moro, exatamente porque deste pântano partidário nasceu o fundo eleitoral e o orçamento secreto, os dois maiores inimigos da democracia, exatamente naquele parágrafo da constituição que diz ser a atividade eleitoral franqueada a todos os cidadãos. Como um cidadão comum poderá ombrear outro que recebeu alguns milhões para subornar eleitores é a grande preocupação das eleições deste ano. Pelo menos a garantia de que a casa não se renova. Novamente, a corrupção se uniu em consórcio para refinar uma autocracia à brasileira. Esta é a dificuldade e não manifestos de apoio a Lula.


terça-feira, 11 de setembro de 2018

A cultura da conspiração

Carlos U Pozzobon

O fato de ter nascido em uma cidade ferroviária em que os trens desapareceram depois de um lento fenecimento, sempre me chamou a atenção para o inexplicável descaso com a retomada do transporte sobre trilhos. Não obstante, e sendo um entusiasta de trens e usuário sempre que ando pela Europa, toda a vez que mencionei este assunto nos últimos 40 anos, seja em oficina mecânica, posto de gasolina ou conversa de rua com desconhecidos, ao indagar o porquê do desaparecimento dos trens de passageiros sempre obtive a mesma resposta: “a indústria automobilística não deixa”. 

Esta frase, recorrente em nosso flaubertiano dicionário de ideias prontas, comprova como é forte as nossas inclinações para aceitar sem mais suspeitas a lógica da teoria da conspiração.

Tudo se passa como se o estado fosse impotente perante a decisão de um grupo corporativo que, sob suas ordens, fosse capaz de prescrever o que deve ser feito na infraestrutura do país que, não obstante, mudando de dirigentes e até de regime político, não é capaz de alterar a determinação de uma decisão secreta, confidencial e supostamente ameaçadora, a ponto de barrar qualquer iniciativa no setor.

Olhando mais detidamente, a conspiração é a forma mais eficaz para estabelecer relações que se adequem a um propósito político. Ela serve para explicar o adversário, mas não serve para ser usada em favor do postulante. Este sempre diz a verdade.

Os argumentos que fundamentam as ideias da teoria da conspiração apresentam mais um paradoxo: alguns casos pontuais verdadeiros passaram a ser usados como um fenômeno geral. Uma contaminação de um produto alimentício passa a ser usada para combater todo o produto. O defeito em um aparelho eletrodoméstico liquida com toda a produção. Um acidente de trânsito sempre tem a suspeita de ter sido provocado, antecedendo qualquer explicação.

A teoria da conspiração possui uma superioridade imbatível. Ela conforta aqueles atormentados pela dúvida com uma explicação simples. Serve de autojustificativa para o descontentamento pessoal frente à expectativa de uma vida melhor. Diariamente, milhões de brasileiros estão pensando em como sair da situação em que se encontram para conseguir uma vida mais confortável e segura. Perceptível nos olhares aflitos, no discurso de resignação e na recorrência da esperança, a conspiração como discurso explicativo dispensa qualquer esforço intelectual para entender a realidade: ela passa a ser a vontade sórdida e oculta dos inimigos. E levada para a disputa eleitoral, se transforma em um festival de besteiras letal para qualquer candidatura reformista.

A ideia de conspiração se ajusta a falta de confiança que fundamenta a vida social. Povos submetidos a autocracias garantidoras de poderes discricionários são propensos ao pensamento conspiratório. A conspiração está para o pensamento político como a superstição para a explicação de fenômenos naturais nos povos que antecederam a modernidade científica.

Conhecendo de sobra o legado do lulopetismo para o dicionário de conspirações, saí em campo atrás de uma explicação na direção oposta, me detendo na tão badalada afirmação de que o PCC comanda a política em São Paulo. Alguma coisa deve se passar, pensei eu, nos subterrâneos do poder que, de forma abafada e subversiva, define o que Alckmin faz ou deixa de fazer no estado, por ordens secretas de um grupo que comanda detrás das grades, mas com um aparelho que deve ser superior a tudo que se imagina.

E assim cheguei no meu vendedor de peixes das sextas-feiras, um atento erudito de tudo o que se passa no mundo do crime organizado. Diz ele que sim, o PCC manda e desmanda em São Paulo, e sabe por quê? Eles derrubaram o helicóptero do filho de Alckmin e mandaram o recado: ou ele obedecia ou seria o próximo. E o governador, impotente e amedrontado, passou a ceder a tudo o que o PCC queria.

A teoria da conspiração foi feita para criar perplexidade mesmo. Teria alguma relação com a cultura das novelas de TV? Recobrando o fôlego de tão certeira análise, perguntei a ele o que o PCC quer, queria ou pretende para os próximos anos? E aí percebi que o peixeiro é mais escorregadio que os produtos que vende. “Ora pois, não sabes? Mas como?” E ficou com a pergunta no ar até que eu me rendesse e dissesse que não sabia, ao que ele então replicou triunfante: “Para tirar a Polícia Militar do caminho e deixar o tráfico agir impunemente”. Toda a vez que fico basbaque não sei realmente o que responder. Na minha humilde opinião é mais difícil controlar uma corporação policial-militar de 150 mil homens com ordens secretas e instruções veladas, do que algumas quadrilhas que, não obstante, continuam a ser combatidas pela polícia e quase sempre levam a pior, demonstrando que Alckmin deve ser muito incompetente para a conspiração a que tem se dedicado.

É inútil qualquer pensamento racional perante o silogismo que a lógica propicia ao eleitor com a limitação confortável das ideias prontas com que foi doutrinado. Nesse ponto da conversa percebi que ele poderia estar utilizando o modelo das milícias cariocas para se referir a São Paulo. E foi então que indaguei em tréplica se de fato era isso. O meu erudito em crime organizado fez um gesto de mão negativo dizendo: “lá é o Comando Vermelho, aqui é o PCC”. Então perguntei: “se os índices de violência em São Paulo são muito menores do que os do Rio, por que o governador carioca não implanta o nosso modelo, levando o PCC para o Rio e reduzindo assim os índices de criminalidade?” Acho que ele já esperava minha contestação, porque foi rápido na resposta: “lá o Comando Vermelho não deixa o PCC entrar”.

E assim me despedi derrotado com a humilhação dos paulistas frente aos cariocas. Vejam: aqui em São Paulo o governo se submete ao PCC por este possuir uma força descomunal que ultrapassa a capacidade do sistema de segurança do estado que, não obstante, é impotente para dominar o crime no Rio de Janeiro. Legal, não? E essa gente vota. E elege.


segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Ideologia x política: Bolsonaro x Alckmin

Carlos U Pozzobon

O debate principal nesta eleição, sejam ou não eleitos, ficou reduzido a Bolsonaro e Alckmin, turvado pela ameaça constante da presença de Lula na urna eleitoral.

A seis semanas do pleito, não se lê nada além de análises do passado dos candidatos, suas condutas frente aos principais acontecimentos das últimas duas décadas e as relações com a Lava Jato.

Não passa despercebido ao observador quanto a quantidade e qualidade de argumentos favoráveis a um e outro candidato, o fato de Bolsonaro não ser uma candidatura política. E sua força provém justamente desta característica. O esgoto moral que veio à tona pela prolongada administração petista criou o espaço para o surgimento da antipolítica como uma força germinativa que não vai caducar nem mesmo com a derrota de Bolsonaro.

A razão disso é o fato de o Brasil necessitar de uma nova Constituição e estar com as instituições em frangalhos.

O esgotamento do sistema político tem suas matizes nacionais próprias, e no Brasil este modelo se mostra superado a partir da impossibilidade da atividade parlamentar dar resposta às necessidades urgentes de reconfiguração a partir do escândalo do Petrolão.


O surgimento do nome de Bolsonaro vem alicerçado nestas circunstâncias históricas que sem esses fatores não seria sequer considerado devido à precariedade de sua base eleitoral, sua liderança quase nula entre seus pares por sempre ser um outsider do partido que lhe hospedou, concorrendo para o interesse partidário somente pela distribuição do quociente eleitoral de sua base de votantes carioca, e na estigmatização de suas campanhas frente ao rolo compressor do petismo.

Não se pode entender Bolsonaro sem considerar o fato de que ele não é um candidato, porém uma candidatura, e esta diferença explica mais do que se imagina. Trata-se de uma opção essencialmente ideológica, tendo como cerne o combate à corrupção que foi decidida dois anos antes da oficialização das candidaturas como forma de preparação da sociedade para a vinda de um salvador que resgatasse as instituições da bola de neve de imoralidade que o petismo desencadeou. Seus aderentes são em sua maioria pessoas que decidiram militar em seu favor antes e a despeito de qualquer outra candidatura, comprovando que se trata de um movimento com traços fundamentalistas, onde a paixão emocional tem superioridade ao uso racional da prudência comparativa.

Bolsonaro foi escolhido por movimentos agrupados em torno do milenarismo, começando pelos grupos que financiavam a promoção do nome de Olavo de Carvalho como o filósofo que “tem razão” no contexto de um pensamento que haveria de se impor de forma espetacular para um público desorientado pela agonia intelectual causada pela adesão da Academia ao petismo. Como num passe de mágica, durante alguns meses, o filósofo foi propulsado de um jornalista combativo nas colunas de jornais, mas pouco conhecido, no sábio mais reverenciado e o intelectual mais importante no país. Suas lacônicas análises da conspiração representada pelo Foro de SPaulo serviram de alicerce para aglutinação de setores do amplo espectro que engloba os intervencionistas, os militares de reserva ofendidos pelo revisionismo da Comissão da Verdade, os conservadores teocráticos e medievalistas, os nacionalistas do nióbio de Enéas Carneiro, os produtores rurais acuados com a ilegalidade intocável do MST, e de uma geração de pseudo-liberais formados na pressa da absorção de clássicos estrangeiros mas completamente ignorantes da cultura nacional.

Foram estes movimentos aglutinados que escolheram Bolsonaro pouco antes do impeachment de Dilma Roussef a despeito de qualquer outra variante existente no período de 28 meses que antecedeu o pleito. Para estes seguidores, a decisão de votar em Bolsonaro não se tratava de uma escolha política, porque não era uma escolha baseada nas candidaturas, que sequer existiam à época, mas num gesto de adesão às ideias morais expressas no combate à ideologia de gênero, à politização das escolas, à imoralidade da erosão dos valores familiares, e à necessidade de recuperação moral do país a partir da figura presidencial - crença surgida como resposta da própria existência de Lula como o vértice maior dos males do país. Se uma figura presidencial foi capaz de degenerar o país, uma outra seria capaz de regenerá-lo.

Assim, como resposta, Bolsonaro foi a figura providencial que se encaixava na retidão moral imprescindível para desfazer o sistema político através de um trabalho que, por antecipação, conseguisse emocionar as massas para produzir a grande virada.

Para isso, era preciso criar no ambiente político aquilo que o olavismo já tinha feito no ambiente intelectual: a disseminação do maniqueísmo expresso na dualidade da teoria das tesouras, como nivelamento de diferenças políticas, e na necessidade de combater o sistema como um todo, corroído até a medula pelo Petrolão.


Este projeto nasceu para identificar a corrupção com a pluralidade partidária, e jogar na vala comum as diferenças fundamentais da atuação política nacional. Assim, os partidos seriam diferentes no gogó parlamentar, porém na prática, uma unidade subterrânea de interesses pessoais associava diferentes agremiações em uma só direção: a divisão do butim dos órgãos públicos e estatais.

Isto foi o suficiente para que parcela significativa da sociedade aderisse de imediato ao projeto bolsonarista de redenção nacional, esquecendo de alguns detalhes importantes que haveria de fortalecer seu principal oponente. E o principal elemento é que o chamado sistema, ou seja, aquilo que se chama o mecanismo brasileiro, se fosse possível reduzir a um nome, a uma única referência, a uma única palavra, este se chamaria Petrobras. A Petrobras é o sistema, e não combatê-la significa nada mais nada menos do que estar do lado do sistema. Ninguém pode se dizer contra o sistema e esperar que a parcela mais ilustrada da sociedade possa aceitar a manutenção da Petrobras como instrumento de pilhagem por um candidato da antipolítica. Essa omissão não evita a vitória de Bolsonaro, mas serve de agravo para se perceber que o sistema vai continuar agindo, e que tudo o que se pode opor a ele não passa de retórica nos aspectos secundários da vida nacional.

Certamente que Bolsonaro privatizará empresas e simplesmente fechará outras, por suas completas inutilidades para o país. Mas esta política apenas protela para seu sucessor a necessidade de interromper um monopólio que importa 80% do diesel consumido depois de 65 anos de existência, e que transformou a empresa em um emirado carioca.


Por sua vez, o lançamento da candidatura de Alckmin veio revestido da lógica política tradicional: escolha da candidatura pelo maior partido de oposição ao PT (eleitoralmente), formação de alianças e propostas de amplo espectro para a retomada do crescimento e a melhoria geral da administração pública na saúde, educação e segurança.

Alckmin representa a política na sua forma convencional: o enfrentamento dos problemas nacionais sem ideologia, como se fosse o interventor nomeado pelos acionistas de uma empresa responsável para salvá-la da falência.

Sendo um nome do sistema, Alckmin procura convencer os eleitores que se propõe a romper com o ele: avisou que vai acabar com o monopólio do refino, visualizando a retomada de investimento nas refinarias bombardeadas pela artilharia da corrupção e fazer o Brasil se tornar autossuficiente e, inclusive, exportador de derivados a partir do novo modelo energético, que inclui a privatização da Eletrobras.

A ideia parece boa, mas corre perigo. A proposta significa manter a existência da Petrossauro atuando em defesa própria com a aliança dos petroleiros, associada à esquerda estudantil barulhenta e a direita nacionalista zelosa de perder contratos na estatal em torno do mito (este sim verdadeiro) da identificação da Petrobras com a nação. Não é difícil imaginar que a sabotagem será de ordinário exercida com forças políticas que não podem ser negligenciadas, seja como causa para a ressurreição do petismo, seja como necessidade de recuperação do sindicalismo ofendido pela reforma trabalhista, que provavelmente inibirão investimentos estrangeiros, ou atrairão aventureiros descomprometidos com o setor, para impedir que a Petrobras vá à falência por impossibilidade de concorrer com o setor privado.


Um dos nossos historiadores de boa prosa, J M Pereira da Silva, dizia que as sementes do mal são mais profundas do que as do bem. E quando essas sucumbem às turbulências políticas, aquelas renascem com maior viço. Mudar a política energética da área de hidrocarbonetos deixando a Petrobras viva, pode ser tão fatal para o futuro de Alckmin quanto a camiseta que vestiu com o nome da estatal no debate eleitoral de 2006. As raízes profundas do Petrolão dispensam qualquer esforço de argumentação.

Não se pode negligenciar a batalha judicial decorrente, as sabotagens dos petroleiros capazes de produzir uma anarquia no país com a escassez derivada do boicote na distribuição de combustível, os arranca-cabelos dos investidores das ações da estatal na bolsa de valores, e a imobilidade trazida para um governo com uma agenda de reformas urgentes.

A fúria consequente de provar que o rei está nu sem leva-lo ao cadafalso pode representar o estopim de uma espiral de crise que levaria a esquerda histérica e a direita nacionalista para a composição de forças, a ponto de forçar Alckmin a abandonar a privatização do refino para conseguir avançar sua agenda no Congresso. Nesta visão pessimista, a privatização da Petrobras teria de ser postergada para o futuro.

Se tanto Bolsonaro quanto Alckmin vão se dedicar às reformas, a diferença entre ambos é que Bolsonaro terá de se reinventar a cada semana, pois não tem experiência administrativa e certamente terá de passar pelo purgatório da burocracia sem conseguir sair de seu labirinto por falta de entendimento da realidade sufocante que a desprofissionalização petista impôs ao estado.

Para se ter um ministério de qualidade, implica em possuir conhecimento prévio de sua gestão. E nenhum dos nomes da equipe de Bolsonaro jamais teve contato com os meandros da administração pública.

Na saúde não basta o conhecimento ambulatorial e hospitalar: é preciso conhecer a burocracia federal respectiva; o mesmo ocorre nos transportes, mineração, educação, segurança e sobretudo na área ambiental. Sem este conhecimento que só é produzido por pessoas integradas na gestão específica de cada órgão e na experiência parlamentar, dificilmente poderão reparar os vícios da administração pública, uma vez que ela foi toda montada em uma narrativa ficcional de lisura e bons propósitos de uma tradição nunca rompida na nação que formou o Estado como representante do interesse público.

Não é preciso recorrer a Max Weber para saber que as aparências de uma administração estão bem escondidas pelas lantejoulas de uma funcionalidade para deslumbrar marinheiros de primeira viagem. A recente passagem de Rabelo de Castro pelo BNDES ilustra bem o que pretendo mostrar: o recém-chegado não consegue livrar-se da atmosfera de endeusamento que a instituição cria em torno de si, resultado natural da cultura do privilégio, pois se os 17 excelentes salários anuais da instituição forem verdadeiros, pode-se esperar que criam a mais enlevante atmosfera de excepcionalidade profissional, especialmente quando ao pisar para fora da porta do edifício sede, a sociedade que ali transita já não mostra nos semblantes os mesmos encantamentos dos seus frequentadores. Que esta euforia tenha sido objeto para a proposição do brasileiro como Homem Cordial, mostra muito bem como se pensa pequeno.

Quem conhece as entranhas do estado brasileiro percebe que se trata de um teatro para inglês ver e o mais comum são os arranjos interpessoais de funcionários agindo no interesse próprio no mais descarado e repugnante patrimonialismo de uma micro, mini e às vezes macrocorrupção em alta escala. Este diagnóstico se encontra em nossa literatura de qualquer período histórico. Trata-se do resultado do estatismo e da deterioração institucional garantida pela estabilidade do servidor, dos procedimentos recursivos e da mútua proteção que envolve o toma lá-da-cá das transgressões praticadas como expediente administrativo e da ausência de sanção neutralizada pela complacência de não gerar conflitos que causem urdiduras contra o disciplinador.


De Alckmin se pode esperar que saiba como contornar os meandros políticos para fazer avançar o processo ainda que seu estilo “devagar e sempre” seja insuficiente para as urgências da Nação, enquanto Bolsonaro, não tendo estes requisitos, indica que terá enormes dificuldades de promover mudanças para fazer o dromedário andar.

O que o quadro eleitoral indica é que se Bolsonaro sair vencedor, terá de renunciar ao ideologismo e avançar na política funcional. E se Alckmin for eleito, terá de sair da política para dar satisfação às demandas ideológicas da sociedade devido a indecência causada pela propagação das novas ideologias das minorias.

Ninguém consegue governar sem o Congresso, e quem não entende isso, não saiu ainda do pensamento primário de que se pode dirigir um país continental por algum efeito de mágica. A insistência no desprezo à composição qualitativamente diversificada do Congresso, abre as suspeitas para que um candidato pretenda se tornar ditador, imaginando que sob seus decretos todo o país ingressaria em um período de paz e tranquilidade. Esta ilusão já causou muitos estragos, especialmente quando se sabe que nenhuma sociedade pode melhorar se ela não sabe escolher os melhores. E a agonia do nosso tempo consiste em o povo não ter a quem escolher nos pequenos municípios onde se geram a maior parte da representação dos cargos eleitorais. Em consequência, o Congresso sempre será uma casa onde a corrupção vai estar presente, especialmente quando o modelo eleitoral requisitar cada vez mais recursos para vencer as disputas. Negar a convivência com a corrupção incontornável pelo próprio modelo político e estatal em nome de uma pureza moral sempre fez parte dos movimentos revolucionários. Que, diga-se de passagem, raramente acabaram bem.

É nesse ambiente que vamos para as eleições: se Alckmin não tem jeito para assumir a postura “rouba mas faz” que garantiu superioridade política à direita em diversos momentos nacionais, ele ao menos deveria bater forte na degeneração do sistema de ensino (não se refugiando em estatísticas), na picaretagem ambiental, no cabresto cultural da Lei Rouanet e nas odiosas estatais parasitárias. Deveria ao menos saber lidar com o vitimismo que tem gerado multidões de votos e vir a público mostrar suas obras e no que o Petrolão negou à população durante sua administração, no desfazimento de contratos, atrasos e assim sucessivamente em fatos e casos, procurando captar a atenção para o país da situação dos estados em que não houve passagem do PT pelas administrações, como São Paulo, Paraná e Santa Catarina, relativamente capazes de suportar a recessão e, sobretudo, apresentar um plano consistente de infraestrutura para o país baseado em sua experiência no estado de São Paulo.

Bolsonaro por sua vez, se apresentando como um homem que tem uma missão a cumprir na vida política, mal suspeita que está lidando com um sentimento fundamentalista de alguém que recebeu um chamado divino próprio do redentorismo. Um Messias possui uma força moral extraordinariamente grande, mas ela é fogo de palha. Serve para eleger, mas não serve para governar. E aqueles que estiveram hipnotizados por suas palavras em pouco tempo vão medir os efeitos na métrica dos resultados. O vitimismo dosado diariamente para justificar os parcos resultados como decorrentes da realidade herdada tem prazo de validade. Somente ditadores conseguem se apoiar na retórica de suas pequenas conquistas morais indefinidamente. E é isso que faz de Bolsonaro o mais combatido de todos os candidatos. E também é isso que faz seus adversários o compararem com Lula. Se eleito será o mais vigiado de todos os presidentes que o país já teve. E se enveredar pelo caminho da acumulação do poder pessoal – como a proposta de aumentar o número de membros do STF para seus escolhidos garantirem a maioria, e não a criação de um CNJ com controle externo –, vai criar uma oposição intensa de unidade nacional contra ele, envolvendo o espectro político que se opôs aos militares 50 anos atrás, desde a esquerda sectária até os liberais e todos os que de alguma forma estiveram contra ele com base no “eu avisei”. Se o povo conseguiu derrubar um presidente com a indiferença da imprensa, imagine com seu apoio maciço.

Ortega y Gasset chamava o conflito de direita e esquerda de hemiplegia mental. E setores da opinião pública sabem disso quando sentem que o bolivarianismo foi uma resposta fracassada aos regimes militares da América Latina que também fracassaram trinta anos atrás. As redes sociais se prestam ao papel de não só interromper a alternância destes ciclos, como ajudar a combater a amnésia histórica que nos castiga.